Vertigem (um conto para maiores de idade)






                nessa mesma hora, enquanto a aeronave adernava entre gritos e silvos, depois daquela estranha explosão, e já determinava a rota descendente e vertiginosa de sua queda, enquanto voavam xícaras ao teto que pintavam abstratos espontâneos com café quente ou vinho tinto nas paredes e nos armários de bordo, pressagiando o sangue que ali se derramaria e, ao mesmo tempo, espatifando os orgulhos e esperanças dos passageiros desesperados;
               nessa mesma hora, em que se ouvia um estrondo que rompia as seções que dividiam aquele charuto voador em várias classes sociais e preconceituosas, e o qual servia de transporte e de último abrigo àquelas vidas que se congelavam em filmes que se passavam em suas mentes na velocidade da luz, a intercalar a luz ou escuridão de seus passados em flashes fugazes de um amor encontrado ou perdido, uma ceia de natal inesquecível, a mamadeira que lhes queimavam os pequenos lábios e lhes matavam a fome, das bolas recebidas em pactos ilegais, sexo transbordante e pedidos de clemência;
            nessa mesma hora, que, entre os corpos que rolavam corredor abaixo e uma cachoeira de objetos caíam vertiginosamente, como uma cascata mortal e traiçoeira sobre os passageiros que gritavam;
            nesse instante em que as caixas de oxigênio de emergência se abriam deixando cair máscaras como serpentinas de um carnaval nefasto,
            e enquanto meu rosto era jogado e pressionado de encontro ao encosto da poltrona da frente e eu berrava sentindo o maior pavor que já sentira em toda minha vida, eu vi o Otávio naquele terno de grife, que eu detestava, porque ele presumia que combinava com o perfume que mais me parecia urina de gato, mas que eu dizia que eu adorava para não escutar aquela lengalenga de que usava para querer me agradar e que nunca conseguia, que eu nunca fora generosa, nem com ele, nem com as crianças, o que é uma mentira infame porque, que eu me lembre, eu fui uma mãe que a minha própria mãe jamais conseguira ser, e, naquela hora, dentro daquele cenário de horror, não pude então acreditar quando eu vi o cretino ajoelhar-se ao meu lado, enquanto eu incrédula,continuava a gritar o mais alto e histérica que podia e rasgava meu tailleur caríssimo, e apertava os braços da poltrona do avião, e mesmo assim, ele, tranquilo, continuava a me encarar solenemente, e daí, ouvir o safado declarar :
- Meu amor, fique calma! Eu preciso que você me escute agora, porque eu preciso lhe dizer uma coisa,


  
                                                                                                                                         cena de aeroporto 75


a coisa mais importante da minha vida pra você - porque você que foi o amor de minha vida, meu único amor e que eu já a seguia desde o ginásio, para poder perguntar se você gostaria de me dar o prazer de carregar sua mala amanhã até o colégio e aceitar uma coca-cola geladinha, que eu comprava ali no bar da escola, porque assim, se isso você permitisse, os meus dias seriam mais felizes mesmo se chovessem canivetes abertos, mesmo que fosse ressaca na praia e um vento nefasto carregasse todas as barracas com todas as peruas e seus bloqueadores solares pra lá do planeta Júpiter e nunca mais tivesse de ouvir as imprecações delas, de que estávamos jogando areia em cima das suas toalhas, quando jogávamos futebol na beira da praia.
       e  você que eu levei ao baile de debutantes, com o coração a soçobrar na ressaca do primeiro porre da minha vida, e que sempre demonstrou uma superioridade espiritual e de conduta que serviam de exemplo à toda classe, e que era o orgulho da família, mas que a mim cedeu dizendo que ninguém podia saber, depois gemeu enquanto a minha mão explorava a pele secreta debaixo do pudor dos avanços que eu fazia dia à dia em sua virtude, prestes a ser corrompida por meus arroubos do crescimento, do que você não imaginava o tamanho, e já sentia os pelos úmidos e negros a se enroscar em meus dedos heróis viris à procurar o que eles sempre mereceram, porque eu sempre fui e serei o seu homem, seu macho, e a fiz chorar de loucura quando a fiz minha, rasgando o que te protegia porque eu era o gigante dos seus contos de fadas;
      e você que se casou comigo naquela igreja lotada a sorrir confiante, sem que ninguém soubesse que já carregava o investimento mais feliz da minha vida, e me aceitou como seu legítimo esposo,
      e você que sempre soube ter compreensão com os deslizes que eu talvez tivesse feito e os meus atrasos, os meus ataques de fúria, com os quais eu já esperava que não lhe dobrasse, mas apavorada, você acabava assentindo, sempre à me perdoar, para que depois eu me dobrasse também e visse que talvez eu não estivesse coberto de razão, embora eu estivesse sempre com toda a razão;
      e você que eu sempre amarei e confio cegamente, a qual eu nunca percebi o mínimo motivo para desconfiança; eu gostaria que, por tudo isso, por todo nosso amor eterno, por suas atitudes de rainha sem cetro, mas que hoje possui um império que eu construí com o meu trabalho, porque eu precisava sustentar as suas manias e seus desejos fúteis, os teus filhos mimados, que por acaso são meus também, porque eu precisava ter mais, muito mais que qualquer um, para calar a boca do meu pai arrogante, que desprezava o meu potencial porque nunca viu nada em mim que pudesse fazer para conseguir meus objetivos e, incompetente, não viu a minha ganância sem fim e sem escrúpulos, a minha inveja de quem tinha o que queria, o meu desvario com poder, e a brutalidade e a covardia que usava no trato com os funcionários, porque comigo cada um tem que mostrar sua eficiência, antes mesmo que eu suponha que haja qualquer situação ou razão para que seja necessário qualquer eficiência, e eu mesmo não perdoo, porque o que eu consegui foi por mim mesmo, porque eu mereço, assim como sei que lhe mereço também e você também me merece, é que vou lhe pedir o que é o meu direito, porque você sabe que eu nem sempre tinha você à mão, ou nem sempre estivemos em paz, e eu, como qualquer homem, tenho necessidades as quais você não satisfazia de jeito nenhum, e eu, como um homem desejável por qualquer mulher que tenha um juízo perfeito, porque tenho, eu sei, uma boa aparência, e sou rico, muito rico, e o que toda mulher quer é isso - dinheiro,
poder, e eu não estou pedindo uma consulta à você sobre o que você acha, mas pedindo, implorando, exigindo se for o caso, que eu preciso de um perdão, um perdão por que eu olhei outra mulher, outras mulheres, porque eu fiz sexo com outra mulher, com outras mulheres, fiz até uma coisa com uma amiga
sua, sim, sua melhor amiga, e foi ela que te traiu, e não eu, porque sempre demonstrei que eu era um homem, que você devia cuidar melhor do que tinha em casa, e nada, e nada. Mas, não foi só ela, também a sua prima, a Eliane, aquela que você nunca desconfiou porque era sua colega da primeira comunhão e era tão apaixonada por aquele filho da puta, que nunca fez mais nada, a não ser ser um filho da puta, e, como ela ficou frágil, se lembra como ela chorava dizendo que ia se arrastar atrás dele até o fim do mundo, se fosse necessário, mas que não sabia aonde ele tinha se metido e que ia descobrir, e eu me prontifiquei a ajudá-la e a consolava, e a levava de carro daqui pra lá, de lá pra cá, até onde não mais dei por mim, e seu vestido não estava mais só úmido de lágrimas, eu não estava mais me contendo, porque uma mulher sofrendo me deixa sensível , e você sabe como sou sensível, e que quando estou sensível eu ... Mas, você sabe que eu te amo acima de tudo e eu apenas a distrai do seu sofrimento, fiz bem à ela, por você, embora eu não aceite bem isso em mim, e por isso eu quero o seu perdão, eu preciso disso agora , porque agora que vamos morrer, e eu tenho certeza disso e eu nunca erro: nós - vamos- morrer! e só nos resta o seu
perdão para morrermos como um casal feliz e irmos para o paraíso que merecemos! Pense em tudo isso agora, porque para mim não teve a mínima importância, que foi muito diferente do que aconteceu com a sua irmã .... Já a sua irmã, aquela vadia ... Meu Deus ... Meu Deus ...!

    

                                                                                                      cena de Voo United 93



        e outra guinada jogou uma aeromoça sobre uma  senhora com um bebê de colo que o abrigava e o embalava sussurrando, ninando com o boi, boi da cara preta,pega essa criança que tem medo de ... enquanto, sai de mim, me desculpe, me desculpe, a senhora está bem, coloque o cinto, não tenha medo, fique tranquila, está tudo sob controle, o piloto é muito ágil, enquanto pensava a culpa é minha, a culpa é toda minha, vamos todos morrer e eu sou a culpada, se eu não tivesse levado aquela bicha lá, filha da puta, louca, estou pagando por não ter preconceitos, meu Deus, me salve, perdão, eu não queria, como eu ia saber o que ela queria fazer, assim do nada, bicha maluca, o senhor se segura, coloque o cinto, e Deus é grande vai nos salvar, meu Deus, o que fazer ela foi, eu não posso confiar mais em ninguém, eu não posso chorar, minha mãe, minha mãe, me salva, eu vou morrer, traz Olodum, traz a Serena Piedade que me protege, eu amo o menino Jesus, minha Nossa Senhora das Preces, e .. boi, boi da cara preta, me faz ... Socorro .. . Socorro .. . Como podia saber que a traveca escondia uma bomba, uma bomba, e corri dali, não ajudei o piloto, fui uma covarde e não profissional, como vou me perdoar, uma bomba de spray de cabelo, eu não acreditei, explodiu, tenho que ir até lá, eu tenho!



                                                                                  cena de Voo United 93



        e tentou se levantar no corredor íngreme onde rolavam bolsas e mil objetos de não-sei-quem, se arrastando até a porta da cabine, enquanto o Jumbo arremetia nuvens adentro, fazendo vento, fazendo o céu menos azul, enquanto torrentes ganiam na descida, vomitavam poeira, e o piloto atônito empurrava a bicha louca de cima dele, e agarrava os controles e gritava no microfone de bordo mayday, mayday, nave sem controle, nave sem controle, e empurrava o manche que não respondia, e o corpo ferido e ensangüentado daquela mulher, daquele homem, daquela coisa insana jogada e espatifada ali, mas porquê? ... Porquê? Porque pediu para conhecer a cabine e a débil mental da aeromoça a trouxe rindo, achando muita graça diante dos ataques de bichice e vulgaridade que ela devia fazer para agradar em qualquer boate em que fizesse seu showzinho barato, e que de repente mudou rapidamente, quando começou a gritar que descesse o avião, ali, no meio do oceano, que queria mudar o seu sexo em Casablanca, e que quis sequestrar um avião para que descesse lá, que se eu não descesse ia explodir aquela babaquice, um spray de cabelo, e eu ri e o copiloto também, e agora ele está ali sem sentidos, com os ouvidos sangrando na sua poltrona e desacordado. O mundo está perdido, como pode isso acontecer? Se eu soubesse antes, eu mesmo o teria capado o filha da puta, a explosão se incumbiu de lhe dar o que queria, abriu uma buceta na sua barriga, mas não há de ser nada, eu sou mais eu, eu tinha as melhores notas, tenho coragem, tenho o brevê mais condecorado, mais cobiçado do mundo, eu sou o mais invejado e mais sortudo do mundo porque eu amo minha esposa e meus filhos, e por eles eu vou vencer, para isso eu sou um piloto, porque eu adoro isso, nasci para isso, para salvar esse voo, e ... sai daí, sua bicha escrota, agora eu posso te chutar, e tenta a atingir com o bico do sapato





        e depois, agarra o manche o puxando para cima, os flaps se levantam  ligeiramente, mas forçando um grande tranco. Tudo despenca. As garrafas de água se soltam da geladeira e rolam corredor abaixo sem matar a sede de conforto, de salvação, lavando a peruca daquele ser solto no chão, daquele ser desesperado que jazia ferido por sua solução descabida, seu destempero, ou a falta de solução por ter nascido daquele jeito, com aquela coisa enorme entre as pernas, que nunca foi dela, que só podia ser uma maldição, ela tanto tinha rezado e rezado, e quanto mais apanhava do bêbado do seu padrasto para aprender a ser um homem, a ser macho e não o cobrir de vergonha, mais rezava, até que ele a jogou na rua sem nenhum tostão, sem nada, sem ninguém que a ajudasse a não ser as leis da rua, as leis do aqui e agora, da feira da putaria por um pedaço de pão, por um copo de leite, submundo, nesse inferno que sempre a acompanhava, e que ninguém se salvava, com exceção de Dario, Dario, o santo, o que a ajudou porque a achava bonita, bonita de coração, porque dividia o que tinha com os outros famintos, porque não passava pra trás ninguém, e se roubava algo era porque aquela pessoa merecia,e não a uma pessoa qualquer, para salvar alguém que precisasse, e por isso Dario lhe mostrou um lado que a humanidade nunca lhe mostrara, até quando lhe arrancava a calcinha e acariciava o seu sexo rígido e ameaçador, e pedia, e se deixava ser possuído, por que era homem macho até ali, assim, de quatro, sendo penetrado. E ele, mulher, a mulher que se faz de homem para satisfazer por amor a quem lhe ama, e quem foi que lhe possibilitou ser a mulher que queria se transformar, depois para essa aventura em Paris, que ele pagou para ela, para ter uma nova oportunidade, correr e fazer a vida pelo Bois de Boulogne e tentar uma chance melhor nas estranja, que foi onde tivera aquela ideia, depois de fazer um michet com um estrangeiro que se dizia terrorista, já naqueles anos oitenta, e lhe ensinou a como fazer uma bomba em casa e contou sobre aquele paraíso onde homens se transformavam por passe de bisturi em mulheres lindas, e que só se descobriria a verdade depois de tirar a burca, e que, tirando aquela burca, tantas mulheres eram homens, e homens se faziam mulheres, porque gostavam de homens, sendo homens que podiam ser mulheres, mas que, às vezes, também gostavam de mulheres que eram mesmo mulheres - o fim da diferença sexual e liberdade para sempre! Entusiasmado com a ideia, não haveria agora mais outro jeito de não acontecer, e mais ainda quando soubera, e não da
melhor maneira, mas da mais violenta e humilhante, que les Champs Elysées o convidava para dar o fora dali, que a França a expulsava como marginal, e que o carro dos "les policies" viera para a chutar de casa para o aeroporto Charles De Gaulle, sob empurrões e ameaças, e que nunca mais voltasse, não sabendo que ela já havia traçado seu destino bem antes, e não era que aquele bando de gendarmes que iriam ditar seu destino que agora era somente dela, que tinham vindo bem à calhar a jogá-la naquele avião, sem pagar passagem, trazendo oculto já no ventre seu sonho - o destino, o nascimento de um novo ser, uma nova vida pulsando, agora escondida debaixo da roupa, uma passagem para o harém do Paraíso, para o País das Vaginas, para o total de amor Dario, para o céu. Não sabia ela que o que aconteceria realmente mudaria seu destino, não sem antes pagar mais ainda por ter nascido com uma mente destroçada pelo que nunca fora dela, a louca Giza que surgira dela ainda na adolescência, com a vontade voraz da fêmea, a fêmea que se maquia e penteia os cabelos com spray de laquê, a fêmea tão doce e calma que pode ser penetrada por quem merecesse, depois de lhe arrancar o vestido e lhe puxar os cabelos como Dario fazia, quando sentia que ela assim o queria. E agora, depois de tudo que aconteceu, via tudo desaparecer com o zunido profundo do ar que despenca com todo o mundo junto. Se ela pudesse talvez conseguisse salvar Giza! Se ela superasse essa dor destroçante que lhe escavava o corpo e se levantasse, então aí, poderia ser possível resgatar Giza. E, por isso, começou a gemer com o seu esforço para se levantar, incentivada pelo chute que recebera do piloto que não a olhava mais e gritava : torre ... torre, por favor responda, este porém, ao escutar os lamentos da maluca explosiva, num acesso de fúria descontrolada e vingativa, temendo novas e explosivas surpresas naquele caos, tenta chutar novamente o travesti, porém, perdendo o equilíbrio, escorrega acidentalmente e seu braço bate sobre o comando violentamente, empurrando-o para cima com a força que ele não tinha, mesmo se quisesse, e de um  modo abrupto. O manche que mal lhe obedecia, então se faz milagre, e inesperadamente,  volta a responder de imediato, fazendo os flaps se elevarem de vez, travando uma queda de sete mil metros, mas ainda à dois mil metros do chão. Todos começaram a respirar de novo, em silêncio, depois uma salva de palmas eclode, urros, delírio. No microfone uma voz explode :
- Devido aos últimos acontecimentos de emergência, teremos de pousar no aeroporto mais próximo que é o de Casablanca. Desculpe o incomodo, mas a aeronave já se encontra sob o nosso comando. Por favor, afivelem os cintos de segurança. Vamos aterrissar. Muito obrigado. Casablanca, pensou Giza, consegui!

E desfaleceu.

                                                                                




A aeronave desceu sem problemas na pista fervente. Uma ambulância aguardava para resgatar os feridos. A aeromoça desceu abraçada ao piloto. Uma mulher desceu direto ao serviço telefônico internacional. Com a elegante roupa rasgada, foi reta à cabine telefônica e chamou através dele o seu advogado e pediu o divórcio litigioso : - quero tirar tudo que ele tiver, disse ela. Arranque tudo, mais tudo que puder - gritava, e não esqueça dos testículos, urrou! Enquanto isso, os passageiros desciam exangües, pálidos, ressurgidos da experiência sinistra impingida pelo horror de uma involuntária e brutal reavaliação de suas vidas.
O co-piloto havia sido ressuscitado pelas equipes de emergência e desembarcava do seu pesadelo segurando panos tingidos de vermelho sobre a sua fronte.
Um corpo saiu de maca e coberto para o hospital público. Uma chamuscada e ensangüentada cabeleira se via entre os lençóis. Policiais o acompanhavam porque, depois do atendimento de pronto-socorro em um  hospital, a sua próxima parada seria a sua recuperação, num presídio local para homens.


                    Esta história é baseada em fatos reais. Os nomes foram trocados e os sexos quase.