quinta-feira, 4 de março de 2010

Antes de dormir



Quão vão escrever o que não ouso dizer! Será que me é possível também senti-lo? A solidão e o oculto me dão coragem de ser o que nunca fui. Contudo, quase não sou agora, mas apenas sinto e por isso não há como negar-me. Vivo e sou entre os pingos da chuva que ouço. Enfrento o medo que sempre tive; cada respiração é o que me entrega. Sou apenas de carne e osso, sentimento. E tenho de me reinventar inteiro e, no inteiro, fazer a vida fluir de novo. Mas, isso, só amanhã quando acordar. Agora posso ser apenas aquele que vai dormir, aquele que apaga a luz, aquele que se cobra e reza por melhores dias, e fecha os olhos, e me deixo ser como um tapete que flutua me levando à Sherazade. Mais uma noite a zunir nos ventos, a lhe adiar o destino, a fábula. Quando durmo esqueço as luzes, os dias somem, fazem de conta que apenas serão amanhã. Agora, sou apenas aquele que não está mais aqui e em algum lugar escolhe as cores, as que não existem, que representarão o tempo do "pra sempre", do Era-uma-vez em lugar nenhum, da quimera. Ressono em paz. Persono. Sinto o céu, apago a Lua. E não sou mais nada. O tapete voa, sonho.

















Aqui estou eu no meu mundo, meu pequeno mundo, aqui onde só há quatro dimensões. Mas, dizem que tantas outras existem. Talvez, eu perceba mais algumas onde habitam cada um dos meus sentimentos

um se deita e fecha os olhos
um imagina o impossível
outro vê o futuro, lê o tempo
mais um pensa em quem falta
outro acarinha essa mesma ausência
um fica com a mãe
um entristece, um urra, um geme
um é louco, um cura, um corre, treme
um teme, um briga, um arremete pelo caminho
um quer ser feliz, delira, sorri

entre eles a televisão passa, comerciais seduzem, personagens riem, amam, falam, conversam no espaço

Me lembro do que eu quero
Me lembro de quem não está
Me lembro de quem não me lembro
Mais, de tudo, eu me lembro
de quem mais não me lembra


Fecho um romance
leio poesia
sou diferente
porque sou comum
existo entre xícaras de café
entre copos d'água, sussurros, risos e ventiladores
enquanto minha lapiseira corre
as linhas acabam
a folha termina
É tanto sentir
Mas, como dizê-lo?

O tempo e o vazio 2



Quantas pinceladas se fazem para surgir uma obra de arte?

Uns dizem dezessete mil, outros de tantos pensamentos quanto um discurso de um filósofo, ou de tantas

palavras quanto um escritor precisa para rabiscar e depois escrever seus livros.


Mas, alguns se armam de uma profunda inspiração, inalando, se possível, todo ar da sala ou do universo,

olham para o alto e decretam em tom messiânico, como só as mais altas divindades pudessem lhe escutar e

lhes entender, que não há pinceladas e não há obra de arte e sim uma infinidades de volutas que atravessam

a mente e o espírito de cada um que pousar seus olhos além, ou seja, através dessa superfície que suporta a

pretensão de meia dúzia de reis que reinam nas barrigas de quem as pintam, até os planos em que se tornam

apenas ideias - puras e simples ideias. O olhar é iludido, enganado, traído, mas ao chegar ao terreno sublime

do ideal, tudo se desfaz, ao contemplar nua, despojada de tudo que lhe fosse supérfluo, a imortal e eterna

Verdade. Os olhos, apenas tolos, enquanto os cérebros, estes sim, privilegiados, alçam seus voos mais altos

para melhores e imortais companhias, as quais fariam do êxtase o leito de sua fartura.

E os olhos espertos então revistam e avaliam as condições financeiras dos fiéis adoradores, que pretendem

pagar o bilhete de viagem para o Parnaso prometido. Sorri.

 E eu?

O que faço?

 Eu só pretendo encher os segundos e esse espaço enorme e branco, esse papel qualquer, essas linhas por

onde o tempo caminha, escorre e desaparece, rindo de mim.



Cotidiano



algumas coisas são como são
os carros não param nas avenidas
tanta gente anda nas ruas
nascem, vivem, morrem

Madalena seca as suas mãos
no avental
olha para o vazio
pensa

e eu nem sei
porque falei nessa Madalena
quem seria Madalena?
quem seria eu?
serei eu como sou eu?

o tempo passa
e de que serve tudo isto?
é como é
não serve
apenas é
outros caminhos não são
são apenas passagem
mudam
transformam
reciclam
vivem a metamorfose
o-seu-des-ser

mas, e o que eu pensei antes?
as coisas são como são
é verdade
é como é
ou é como será?
ou já será como foi?
como se tudo
fosse um único sendo?

sim, uma verdade
eu estou sendo a mim
não há como não ser senão a mim
em sendo eu
eu fui
eu sou
eu serei
como tive ou terei de ser

tudo isso já existe em mim
dentro desse movimento 
o tempo
essa dimensão de ser fluxo
assim como essa tal de Madalena
que nunca vi
sujou e depois lava as mãos
e as guarda no bolso do avental

eu também lavo as minhas
também me sujo
também me lavo
torno a sujar
e torno a me lavar
eternamente
obcessivamente
nunca estamos competamente
desprovidos de algo
que não gostamos

porém
tudo será perdão
pois muda
flui
se transforma
como sempre





e continuando a ser
tudo será o que sempre foi 
transição
mudança
o deixar de ser
o não-ser mais
que já sendo é o que será
que já existe desde o inicio
e temos de mudar
entender o que fizemos
e porque fizemos
aceitar em nós
o que não queremos
e o tempo é como é
não existe mais, passa
somos eternos passageiros
somos tudo isso
e já passou
nada
tudo
como antes






A maripôsa
posa
na Lua
como o profundo que emerge
na mente que flutua
ao mistério do céu oriundo
exposto latifúndio
à criatura voadora

O desejo
é a luz que voa
pelo mundo
ao redor do ardor
sincero
que destoa
do triste entorno
que ele inunda
invadindo o universo
em um segundo
como uma frestinha de nada
à toa

Mas, a mente
que recusa que exista na vida
um simples acidente
nem entende
a maripôsa
louca intermediadora
que pousa na Lua
atraída pela luz ardente
algo que com certeza almeja
adora

e o desejo
entremeia então
de sem querer também ser
chama e luz
como o que se queria
nunca antes
mas, precisamente agora
sendo aqui
o que já se precisa
o propósito
o que se necessita
o amor sem explicação
como uma arte
a razão de que não se deixa ir embora
sem satisfazer seu anseio
que por dentro a enlouquece
implora


Chegará a pousar
com suas forças mesmo na Lua?
ou a lunática de asas ainda se demora?
Será só uma explicável atração
ou o desejo que se assenhora?
ou ainda pode ser que ela se confunda
e seja um holofote
de um poste de luz
da rua em que ela mora?

Nunca saberemos
se morre no intento
se é mesmo a Lua
a ameaçadora ardência
dessa luz ao relento
Mas, talvez
só imaginação sua
o instinto que a explora
ou se mesmo são as suas asas
aquelas sombras
que a noturna e vaidosa Selene
ostenta e se arvora
pra nós
e pra toda noite
pra todo olhar
do nosso universo
afora.

Amizade II


Sendo amigo
os dias são companhias
as conversas íntimos atos
as viagens são tantas memórias
os encontros são como publicidade
nosso trato

e as malas não tem poeira
as estradas são amigas
as noites dormem sobre as mesas
os bares são mentes acesas
a destravar qualquer problema

se brigar toma uma
já passou, são lições
coisas de Ipanema
de discutir atrasos não combinados
e frio no cinema
correria pra casa alheia
que delícia as refeições
se ver vale tanto à pena

tristezas serão risadas
lembranças serão contadas
os rostos trânsito a vidas passadas
tudo que não é esquecido
tudo que faz a mesma estrada

pro que se quer ter sempre
pro que aumenta mais que aquela montanha
lembre-se das folhas quando o vento as apanha
se lembra de como a gente se gostou
e desde sempre desse filme que nunca acabou
e tão pra trás ficou nosso rock'n roll


venha comigo
venha sempre
venha vindo
a porta está aberta
vem
você já entrou

Amizade I


Sendo amigo
dias são cinemas
carros são vertigens
conversas são teoremas

de ser pra tudo como solução
de ser pra tudo como sorvete
de ser pra tudo como tua ponte
do que é mais difícil
pro muito mais tranquilo
pra tudo além do horizonte

E é tudo a mesma viagem
não importa quem as conte
e ombros são consolo
livros são nossos rios
tua voz a minha praia
noites são rodas gigantes
interesses são benvindos
uma mão pra que não se caia

teus olhos são convites
pro que se quer mais distante
pro que não se vê nenhum limite
se arrisca, não ensaia
insiste, tudo existe


Venha de avião
venha na contra-mão
venha sem marcar hora
venha sempre como for
venha
venha vindo
já chegou
amigos pra sempre
e de agora, sacou !

A fonte


o que era rigído era sombra
o que era divertido era certeiro
o que era cumprido era passageiro
o que era sentido era essa zona
o que era querido era o mundo inteiro

e foi o presente como nunca
e foi entendido como o que passa
e foi a medida certa para alguns
e foi a revelação de toda graça

o que era claro era comum
o que era feito era o impreciso
o que era meu era tanto riso
o que era prazer era esperança
o que era nuvem era o nosso piso

e foi brilhante por ser fugaz
e foi difícil por ser adeus
e foi alegria por ser pra todos
e foi certeza por ser teu de ninguém mais

o que era silêncio era respiração
o que era pele era sensação
o que era intímo era nosso
o que era olhar era um poço
o que era a água era coração
o que foi o fim foi o começo
o que era toda a sua vida ficou velho
o que eu não esperava - fiquei de novo moço