quarta-feira, 31 de março de 2010

No meio da noite



Eu hoje acordei no meio da noite. Mas já era quase dia. E então, dei de cara com meus livros, meus cadernos de projetos, a saudade de minha mãe, a lembrança do já feito, dos braços que já me envolveram, das palavras que me fugiam entre os átomos, interlocuções, monólogos, uma pequena aranha distraída num canto, e com os livros que me cercam empilhados por todos os lados da cama, me enjaulando. Via tudo com os olhos ardendo, estômago grunhindo e aquele animal de olhos redondos e esbugalhados, mas terrivelmente profundos, sentado na beira da cama, ajeitando os seus pelos com os dedos torpes coroados com  aquelas unhas curvas e sujas, balbuciando sobre os meus lençóis, a me encarar. Petrifiquei-me.



Logo o identifiquei como a medrosa criatura de corpo escuro e rosto triste, que me conhece desde criança, e que chamo de Minha Incerteza. Ela me questiona em tudo que eu faço, desfaz rabiscos, risca desenhos como se não os aprovasse, apaga desejos, afasta amizades ou mesmo a cordialidade. Contudo, geralmente mansa e contida. E me falou com seus murmúrios fluentes e sua meiga face, a visão tranquila do horror.
 - Você hoje sabe! Você sabe! ressurgia a criatura, como que soprando as palavras dentro de minha cabeça com sua voz tremula e sibilante, temerosa.

                                                            foto de Bailly Maitregrand Patric


E compreendi de imediato sua cruel indução. Ela saía de sua prisão invisível em minha cabeça, para me dizer que eu  "já sabia". Sentei de imediato e ela correu e fugiu para o seu nada incerto e infinito, enquanto me dava conta que esse era o seu jogo com minha consciência - de me fazer saber o que vira na rua, ou à comer, ou em cada segundo da minha vida e que me rememorasse de tudo até então. A sensação inominável de estar ali completo, porém completo de ausências, de faltas, de lacunas, vazios e que talvez jamais me desse conta desse impulso, de preencher esses lapsos, que eu temo, como uma guerra.
- Você está sabendo! Você já sabe! voltava a repetir a criatura insana, ressurgida do entre espaços, abanando a  cabeça de cima para baixo numa afirmativa silenciosa e negra.
Ela me queria me ver íntegro com a existência, para que eu entrasse em conflitos internos entre realidades opostas, a do real e a do imaginário, o que eu aprovava e o mundo que execro por sua infinidade de situações de indiferença ao que ocorre em sua volta.
Sabe, sim! Eu sei que sabe! insistia o vulto do espectro asqueroso



- Monstro covarde! gritei no tremulante vazio!
Ele não respondeu não turvando o silêncio. Foi quando me dei conta que eu era o seu alimento. Se fartava de minha ilusão, do meu corpo e imaginação. E o dia prestes a anunciar o seu claro, noite azul. O barulho da cidade, o vizinho e sua música, o arrastar de chinelos, gritos no posto de gasolina, brecadas e o relógio tiquetaqueando em cima da pia discordavam da minha vontade de escapar ao que acontecia. Porém, a mente temia e tremia ante ao embate com aquilo que não podia dar conta. Parecia que tudo me impelia para algo. E, ao observar o quarto, o que acontecera me fez entender e ver a mesa vazia e um papel em branco, me chamando, modesto e faminto, super herói.
- Eu sou tua ausência. Me alimente - disse a folha.
Ideias pularam de imediato, segurei minha lapiseira que escorreu em linhas ligeiras e me fez compreender que ela era a minha borracha de apagar vazios. Desenhei, escrevi, obrei preenchendo todo o branco. Tanta descoberta pela simplicidade do fazer, do existir. Foi com ele que apaguei o monstro de minha mente. Desenhei a chave, passei cadeado completando todo o branco e tranquei a fera em sua própria ausência. O papel cheio de invenções, desenhos, versos, obras, rimas. E uma nova cidade surgiu. Estava livre! A luz da manhã já quase rompia seus segredos. O bicho tinha desaparecido, mas a pergunta danada não saia de minha cabeça - o que poderia saber ? O que eu poderia saber desde sempre?  O que eu podia saber? O que sempre esteve comigo? A existência tem um duro preço pelo seu conhecimento, eu sei, e estremeci pela verdade exposta. Contudo os olhos ardiam e fui até a cama. Eu me deitei e me virei para o lado, me ajeitando ao travesseiro macio, pensei no que poderia fazer para que pudesse contribuir para que algo fosse feito por aquilo que não aceitava no mundo. Me torturei em imagens domésticas e indecorosas até que, enfim, implorei auxílio do que eu não sei e do que não imagino sequer e...luzes! Eu soube então: -  estava ali à minha frente, e que sempre, realmente, me acompanhara desde que podia me lembrar, como eternamente a gritar que não ignorasse a sua presença -  a bendita a Arte que eu expresso, é minha voz, minha resposta. É isso, claro! Eu tinha a resposta!  Ela surgira para que eu finalmente me aceitasse e ao meu destino, minha missão. Ali, justo entre dormir e o acordar, viera a solução em que me encontrei pela primeira vez lúcido à meu respeito. Tal força repercutia tão intensamente, que meu eu se tornou em si o natural caminho para a entrega ao que podia chamar de vocação de uma vida e da sua libertação.  E então os anjos me vieram ligeiros. Ouviram meu apelo talvez, ou talvez por acaso, ou até mesmo tivessem induzido de propósito a criatura a me infernizar, para que eu me revelasse à mim mesmo, nunca saberei. Entretanto logo me trouxeram a sonolência,  me fecharam os olhos, sentaram-se ali onde estava a transparente e transida criatura, agora abençoada pelo que me provocou, e que súbito desaparecera no silêncio à volta, deixando um rastro gelado de suas dúvidas a representar a sua nebulosa ausência. Os anjos pousaram à minha cabeceira, ajeitaram as suas enormes asas sobre a cama, e mesmo que eu ainda não me sentisse merecedor, tocaram com suas harpas e instrumentos de corda, a mais bela harmonia que eu já ouvira, que pronunciava em seu canto que o que na existência está certo é o que te trará a paz . E como uma pedra, então, dormi. O sol nasceu e o dia começou.