segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O buraco

                                                             


                                   Buraco/Hole -1990/1991

                                   grafite sobre papel/graphite on paper
                                   195cm x 120cm
                                   Coleção José Olympio -  São Paulo.
                                   Marcos Vasconcellos

Esse foi um desenho que eu fiz depois de uma crise tremenda! Fiquei doente e não podia mais pintar à óleo e acrílico não me seduzia muito- gostava de trabalhar com o simbólico dos materiais, como aprendi com a obra genial do alemão Joseph Beuys e pelo trabalho do meu ídolo da época - o neoexpressionista Anselm Kiefer.
Por ali tinha me encontrado!
Chorei de vergonha e emoção ao ver na Bienal de São Paulo as telas gigantescas do Kiefer, porque pretendia abandonar a arte por todo o sofrimento orgânico, material e psicológico que ela me trazia ( estava completamente duro e chegara à um estado prévangoghiano, se não fosse minha família!). Para que sofrer tanto afinal?
Talvez eu não fosse tão bom assim!
Talvez fosse melhor aceitar uma carreira normal , dentro de um consultório ou algum emprego medíocre, ou de novo na televisão, mas que me desse dinheiro para sobreviver!

Fiquei andando pelas ruas, solto, sem destino, pensando no que fazer da minha vida. E fui dar numa pracinha.

Olhava para o chão, mas no fundo olhava para mim mesmo.


                                                                                                obra de Anselm Kiefer

Foi quando dei com uma folha de jornal amassada e muito suja de lama, areia e terra, jogada no chão.
Ali, despojada, como um lixo desprezível, mostrava um homem desesperado, mais ainda esperançoso, procurando um diamante cavando com uma pá pequena e velha, no solo de algum lugar no interior desse Brasil!

Eu o via cavando, cavando, cavando e procurando o tesouro que o libertaria da miséria, a pedra esquecida que libertaria sua vida daquele orifício infecto entre minhocas e dejetos.

Eu me abaixei, e , com um pouco de nojo, segurei a foto e a tirei do chão.
Pensei, porque um lixo não pode ser um diamante, assim como na alquimia a Pedra Filosofal é transformada, retirada da Prima Materia, transformando o próprio alquimista nesse processo também em um Iluminado!
Já pensou eu - um iluminado!
E ri de mim mesmo!
A dobrei com cuidado, depois de tentar limpá-la um pouco e a coloquei com cuidado no bolso. E continuei meu caminho para casa, pensativo.
Me lembrei de meu pai trabalhando em casa, quando eu era muito pequeno ainda, e como eu tentei entender o trabalho que ele fazia de tradução e adaptação do que ele tentou me explicar como a General Eletric, firma onde trabalhava como engenheiro, tinha descoberto uma maneira de transformar grafite de lápis em diamante artificial, industrial, sob a pressão de dezenas de milhares de atmosferas, como se tantos milhares céus empilhados uns sobre os outros, caíssem de repente em cima daquela pontinha de lápis, que também em latim significava pedra e daí ,se transformasse num minúsculo diamante, que era a pedra mais resistente do mundo.

Ele falava empolgado, me explicando que era o mesmo cristal que as mulheres faziam jóias, colares caríssimos para se enfeitar, coroas para ser colocadas na cabeça dos reis, ou uma simples aliança de casamento, que selava a união de dois seres que se amavam, para sempre na eternidade.
E sorri, porque era como se eu voltasse para aquele momento, em que conseguia falar com meu pai, ainda que por breves momentos, pois era por demais fechado em si próprio e em seu mundo torturante do seu passado, para mim desconhecido.

No dia seguinte, sem nenhum plano, coloquei uma folha enorme de um rolo gigante de papel que comprara, havia tempos, pregada na parede e pus-me a reproduzir aquela imagem, com ela me levasse a encontrar algum diamante impossível e imaginário, utópico.

Tinha, na época, muito preconceito contra desenhos realísticos e preferia artistas expressionistas e conceituais como meus dois mestres que falei antes.Achava-os frios e apenas um exibicionismo de um virtuosismo, que nem precisava ser tão virtuoso assim, visto que já existiam na época maneiras de se reproduzir uma imagem projetando-as na parede ou na mesa, sem nenhuma dificuldade e que qualquer um que se interessasse pudesse fazê-las quando e como quisesse.

Porém, como não pretendia mostrar à ninguém, fazia-o apenas para mim, continuei por puro prazer da aventura.

Os dias se seguiram, assim como meses, e eu ainda desenhava sem parar noite e dia com a minha lapiseirinha de 0,05mm , a mais fina de todas, construindo a imagem. meus joelhos sangravam sem parar, apesar das almofadas que coloquei no chão para sustentar os meus joelhos dobrados para alcançar os lugares mais baixos do papel meio amarelado.

O desenho se estendia do teto até os tacos do chão em sua largura máxima de 120cm e com 195cm de altura.

Porém, quanto mais me aprofundava na terra , mais uma pergunta me assediava - porque estava cavando o buraco que outra pessoa fizera?

Seria obrigado a fazer, repetir aquela mesma escavação?

Porque não eu mesmo fazia o meu buraco? Afinal, eu escavava ali também para dentro de mim , de minha cabeça e de minha alma!

Uma noite, cansado, apaguei as luzes e dormi sobre a almofada que acolhia meus pobres joelhos feridos.  A lua batia direto sobre o chão, vindo por cima do Cristo ao longe, na montanha do Corcovado e iluminava a Lagoa, e passava através da persiana até o desenho extendido na parede. Meus olhos subitamente viram algo se mexer ,como se surgisse do fundo do buraco que me hipnotizava desde aquele dia na praça. Fiquei imóvel e me pus a observar aquele fenômeno. Aos poucos, percebi que era apenas uma mariposa que ali pousara. De repente, ela levantou voo por sobre mim indo até a estante, sobre o volume de um velho livro de minha mãe. Me aproximei e levei um susto, ao ver o título que se estampava na lombada e tremi por dentro - O Paraíso Perdido" de Dante! Algo como uma predição viera daquela psyché, que voava perdida num apartamento do Leblon. Peguei o volume como um tesouro, entendendo, nesse instante, como terminar minha obcessão por tão estranho ato do impossível mundo circundante.   
Tomado de uma energia inesperada, tornei a pegar a lapiseira e a desenhar estranhos elementos, que à mim soavam tão claros. O buraco era parte de mim agora, mas a realidade da foto me incomodava.

Por fim, resolvi, tirei o homem dali e eu assumi a escavação num território totalmente imaginário , pois não aparecia na fotografia. E assim continuei por nove gestacionais meses.
Aprofundando e diminuindo o tamanho do buraco, e pensando e pensando em mim, na impossibilidade que era a arte, na impossibilidade do viver, na impossibilidade de fazer arte ali naquele paraíso descoberto há tempo ,que era a minha cidade, mas totalmente corrompido pela violência, pelos roubos, pela política, pelos ideais enganosos e tortuosos do próprio homem.
E continuava obsessivamente, como se quisesse transformar o próprio grafite que eu usava num diamante pelo processo de desgaste, pela pressão sobre o papel e realizar o destino latente contido naquela pequenina pedrinha que deixava sua marca por onde passasse.
O buraco foi se estreitando, e eu escavando, escavando, construindo figuras geométricas e alquimias, numerologias desenhadas, relações, pedaços de vasos alquimicos e ossos, encontrando objetos indecifráveis, até que a escavação se tornou como um ponto, que era exatamente do tamanho da cabeça do grafite de 0,05mm.

Pensava o que acontecera comigo, com a minha terra natal, minha praia, meu paraíso utópico perdido e parei - escrevi um nome e uma data - ali estava o retrato em raio X de um delírio histórico, um processo, o ponto de partida e final de toda trajetória - finalmente o paraíso perdido dentro de uma mente, mas seria um paraíso? O que seria um buraco escavado por nove meses? O que era aquilo finalmente? As incógnitas me atordoavam! O que desenterrei? E o que enterrara sob tantos riscos da lapiseira? Alguém descobriria meu absurdo insight?  Por isso, por meu ato insano, tanto cavara como enterrara repetidamente algo que nunca poderia dar conta, e que talvez ficasse melhor enterrado ou o invisível , camuflado por tanta grafite à sua volta.

E o tirei da parede satisfeito, depois de o fixar - ali começava a minha viagem em busca do impossível oculto, o que havia dentro de cada um, que somos todos feitos de grafite, carbono puro, orgânicos, a materializar, desenhar o seu destino, transformar em imagens, realizações de alguma coisa , e ocultando seu mistério, que vive em algum lugar por dentro da gente.  Assim , construimos desafios sobre o não sei o que, ou das lutas que enfrentamos, mesmo que fossem impossíveis para que assim todos pudéssemos concluir nossa trajetória - somos seres à caminho do pretendido final feliz em algum dia!.