quarta-feira, 10 de março de 2010

Carta à uma artista


Ainda agora, escutei uma poetisa falando - dessas novas que aparecem de repente na televisão, enquanto a gente espera o domingo acabar. E era mesmo uma poetisa, não só porque fossem belos os seus versos ou porque a repórter assim chamasse a cândida mulher, mas porque se reconhecia nela que revelava a aura das pequenas coisas escondidas, como se tivesse um radar no coração e um microscópio no cérebro, que ampliasse todas as sensações possíveis, os nichos que se revelam entre as dobras dos pensamentos, acontinentando-se magicamente na harmonia clara que ouvíamos nos versos. Mas, o que mesmo me surpreendeu foi quando disse sonhar em ser Deus - ela queria ter escrito a Bíblia, ser Deus-poeta. E aí, me deu vontade de ter podido dizer a ela, de gritar através da tv : -mas, tu és Deus. Não é preciso sonhar o que se é. A bela Obra é sua também, foste tu que também a fizeste. Todos a fizeram. E eu também! Eu como pequeníssimo pedaço Dele, o Autor. Eu , átomo obscuro de Deus, não deixo de ser Deus também. Porém, não tenho a humildade do poeta em sonhar ser Deus. Talvez por não ser poeta, mas posso representar a pequena porção do tudo. Eu infinitamente, miseravelmente, tão imperfeitamente pequeno, sou obra criada, um embaixador momentâneo da poesia do universo, sou Deus. Posso ler também maravilhas em mim e tentar colar, consertar folhas, emendar as letras dissolvidas, reescrever a Gênesis escrita em ouro com as manchas do meu sangue, com o negro argentino da minha vida, tentar reconstruir a pérola que eu mesmo desnacarei. Tão ignorantes que nós somos, que eu sou, que perdemos nosso valor, esquecemos do que fomos. Temos de restaurar a criação que fomos e somos, e aí talvez nos lembremos de que não é preciso sonhar. Retiremos essa crosta terrível de nossas imperfeições de cima do que é puro e a cada milímetro resgatado da dor e da tolice, e pode ser que, um dia, consigamos ler nitidamente ali, por sobre a pele , algumas letras, uma frase. E, um dia, talvez daqui há muito, mas muito tempo, nos lembremos até do momento exato em que escrevemos todos juntos: "Primeiro era o verbo..."