terça-feira, 9 de março de 2010

O presente


Ela me deu seu livro de poesias e eu disse que eu tinha de lhe responder por escrito, mas com poesias. E ela disse que sim, que estava esperando. Pra quê que eu falei isso, se não era poeta? O quanto de poesia à vista para mim são como os fiats que rolam pelas avenidas, são onibus que trafegam, enquanto os pobres mastigam violência e cospem fogo? Ela me encontrou de novo e disse: - nem um telefonema! E eu disse: - tá bem, eu te escrevo é melhor. Porquê? Abro um jornal, leio, depois o dobro, tiro a roupa, tomo banho, me visto, me arrumo e saio. Abro a porta. Fecho a porta e passo a tranca. Deixo lá o seu livro azul, azul. Porque não escrever? Porque ter vergonha? Eu sou pretencioso e, ao mesmo tempo, também sou nada. Tenho quase quarenta. Já fiz de tudo e permaneço como um grão de areia a lembrar da pedreira de onde vim - meu pai é cruz, minha mãe é dia, me criei na praia, sou como este ar, mas, talvez, com areia, água, sal. Porém, a praia é agora diferente daquela praia que tinha pescador pescando arraias-manteiga e peixes voadores com asas cor de arco-íris, que devolviam ao mar por não serem comestíveis, e dois caras que iam às ilhas Cagarras e voltavam cheio de cocos, de conchas lindas e os músculos estourando - eles iam remando numa canoa colorida de azul e vermelho que ficava largada ali na areia. Até o dia que a noite chegou e nada de garotos, nada de peixes ou conchas e cocos. Foi um dia triste, foi mesmo, mesmo para quem não entendeu as luzes na areia que sinalizavam à noite para o horizonte e esperavam uma resposta ao longe. Eram a suas famílias, pais e mães, irmãos, avós e avôs, amigos e todos que os conheciam e admiravam a esperar em vigília ali na praia de Ipanema. Acenderam fogueiras, usavam lanternas e lamparinas com as quais acenavam, esperançosos, para ninguém. Isso aconteceu se bem me lembro, em frente àquela rua, onde havia uma mansão dos donos de uma rede de lojas chique e do outro lado moravam duas senhoras - mãe idosa e a filha excepcional que sempre observavam vestidas com vestidos de franjas e, às vezes, com uma pena negra e curva na cabeça como duas melindrosas, sobre o muro amarelo do seu jardim cimentado, a olhar as pessoas indo para a praia, ali na Farme de Amoedo. O dia anterior amanhecera com a bandeira vermelha de perigo hasteada no posto oito, houvera uma ressaca daquelas que chegara de surpresa, as ondas cobriam as calçadas e a pista de asfalto e banhavam os pedestres que por ali passavam. Ela começara com uma ventania de madrugada, justo a hora que os rapazes costumavam sair para remar até as ilhas e mergulhar. Não voltaram. O alarme foi dada aos salva-vidas que acionaram uma busca lanchas assim que melhorasse o tempo. A noite baixou e nada. Não parecia a praia alegre e sensual aonde surgiria pouco tempo depois a inspiração para a bossa nova. Várias fogueiras acesas pelos familiares tentavam indicar terra firme aos naufragos. Até a manhã do dia seguinte ninguém foi encontrado. Mais tarde,um corpo foi achado boiando em alto mar e o outro numa praia do Recreio quinze dias depois. Mas, aquele foi um amanhecer triste, nunca me esqueci.E de nada adianta me lembrar, foi-se. Neste momento, a areia está quente, sol em meu rosto e todo o céu está azul, azul. Um pivete luta na praia com um rapaz, logo vem a sua turma e a do outro também. Cadeiras voam, como as barracas, os sanduiches, a gritaria. Socos, rasteiras, palavrões. Tudo voa pelos ares com uma chuva de areia. Os guardas-vidas chegam com outros policiais. Os banhistas correm com as crianças pelos braços. A pancadaria continua com os apitos e tumulto. Eu estou bem longe a imaginar quando virá a onda, o macaréu, o maremoto que vai me afogar em cor. Vai quebrar as vidraças, arrancar as pedras portuguesas e deixa-las pra lá do pantanal e da minha passividade. Será a onda espumante, negra, conquistadora que irá transformar a mata Atlântica e arrancar os espinhos da minha carne. Absolvição. Poesia. E me deixo levar nessa correnteza sem ver que em algum lugar do mundo:

um negro atravessa a quinta avenida

e conserta sobre o nariz seu óculos brilhante e verde;

uma mão lanhada retira um peixe arfante,

amarelo e oleoso do rio Javari;

um ator enforca a atriz numa cena percebendo

o quanto ele a amará na cena seguinte;

abre-se um olho irrigado de vermelho e pinga-se

quatro gotas de Lacril até que a irritação desapareça;

um pastor prega que " de embriaguez e de dor te encherás,

do calix de tua irmã Samaria";

um quadrúpede empaca diante de um onibus cheio

de gente e zum-zum dos insetos;

um tapete mágico sobrevoa as torres das refinarias

incendiadas por foguetes terra-terra;

um mulato de morro penetra a sua nega

mordendo seus braços de deusa Shiva;

uma mulata sacode seus peitos, encobreia,

aperta e quase engole todo o seu Ulisses;

alguém coloca gasolina no tanque sem sentir

que os vapores do combustível são um perigo terrível;

duas drosophillas se acasalam numa retorta transparente

acoplada a um contador Geiger à 0 graus centígrados;

a íris azul, azul do Brad Pitt espelha os refletores

iluminando um abismo sobre o Colorado;

o corpo de uma mulher de meia-idade é encontrado

semi-despido, desfigurado, cheio de moscas, enquanto o

investigador desconfia do seu marido de pouca idade;

em algum lugar do mundo existem Das Dores, Franks,

Brendas, Severinos, Freds, Lulas, Marias, Maries, Marys

Marïschens, Maricotas e Dortemünds e Socorros que nascem

crescem, se acasalam, procriam e morrem como gado;

em algum lugar do mundo, tudo que possa acontecer é um movimento descartado, que passa por meus olhos e deixo escapar, porque não faz parte dessa longa cerimônia elétrica que são os meus sentidos, a minha percepção descuidada, porque penso nessa bobagem que é a onda exterminadora, deusa dos surfistas e prefiro me voltar aos pensamentos da minha juventude diante da impossibilidade de resolver o assunto poesia. Deus deixa rastros na areia como as vírgulas nas poesias: reticentes, espaçadas, silenciosas e eu prefiro ouvir uma voz só, mas que me complete em azul, imensa, sagrada e absurda onda - simples poesia.

dedicada à Rosália Milsztajn

Pra quem escreve versos


Poeta?
Eu não sei o que é ser poeta
se tiver que ser assim
de mostrar estrelas quase quasar
de ser telescópios pra dentro
dos neuronios
de redemoinhos no tempo


se tiver que ser uma noite em rotação
mostrar uma corda esticada
que vem ainda de mais além
ou de uma varanda seca de Benghazi
e que vem de ligar de lá
dois lados de uma dor descontínua
acomodada
ou só dormente e descabida
cravada e esquecida

se tiver que vestir um muro com seu sangue
bem azul de poeta
espelho de sua meta
ou desvio apaixonado desta invivência
e aí
tenha que equilibrar tudo
neste duro azul, tão azul
que prosseguirá bem adiante, pra cima
sem ter que colher das almas dízimo
ou um sorriso desengraçado, dormente

veja bem
o que é ser poeta
tome cuidado, se precavenha
porque se existem estradas azuis e longas
e é você que as pinta assim
para que os homens dela esperem
seu broto
sua felicidade
para todos esses homens que não pedem
para nela andarem ou nela olharem
nem por capricho ou curiosidade
se por ela bate um pouco de sol
ou se já é muito tarde
e não há nada a esperar
saberá porque,talvez

eu saiba melhor o que é ser
um guarda-chuva ou um armário
pois,se abrimos um
para nos isolarmos das diluencias
e depois de usado o guardamos no outro
escondendo da vista contudo
que aquele fora usado
é para que não vejam por ele
que prezamos nossa intimidade
que não é só em nós
que os olhos tem se molhado.