Minha bela Florença



 Devo ficar aqui entre o acontecido e a imaginação. Com as sombras

que se vão, lembro a fera morta - o gigante caído e aquela mancha

escura com a pedra cravada direta ao centro de sua testa, a contornar

o seu rosto - o sangue negro que corria. Seus urros, seu estrondo, seu

riso e o medo, a agonia com seus estertores, agora se escondem entre

o mundo e o silêncio. O seu corpo de seis cúbitos que, esmagado

pelos séculos, são o vazio de algum lugar, de algum templo de

outrora, do esquecimento. Fora-se o vapor dos exércitos.

Foram-se os exércitos. Apenas um ressoar: aclamava-se uma pedra

certeira e um rapazote desaforado que alisava ali sua atiradeira de

espantar lobos como se de ouro fosse, sem notar que, abaixo de

seus pés, fizera nascer uma nação irrigada para sempre com o

sangue desesperado dos sacrifícios e as lágrimas inesgotáveis da

obstinação e da inocência perdida. Da pedra, assim como aquela

que matara o gigante, era feito o espírito, o ideal e a força. E

pensava:

- Com ela fundei a marca do sangue e da vontade, o domínio e

o destino das cidades e dos homens.

                                                                                                                ilustração de Gustave Doré



Pois, eu era aquele menino e já meu destino formava-se despertado

pelo toque fatal de um seixo, um resto de rocha, e por ela, por fim,

ligada à imortalidade e a glória perpétua daquele deserto, povoado

de eternidade, herdado dos céus e Daquele, que lá em cima está

entre os quatro pilares do Trono e por sobre a coroa ilimitada

do Mistério.

                                                              David e Golias - pintura de Caravaggio



Foi em pedra que vi também minha nudez tomar a luz do gênio

humano. Mas, isso muito, muito tempo depois, transplantado

em alma e corpo para a eternidade, presos ali, por artifício de

mãos rudes, um cinzel furioso, um escopo, um martelo, o mais

doce talho, da glória de Michelângelo. Pois, da chuva de pó e

cascalho do mármore afrontado, fui então arrebatado à rocha e

aos contos. Ressurgi como quando Samuel me viu, como quando

amava Jonathan. Um garoto, meu Deus, ao tempo que o Espírito

veio à minha casa e disse: "- És tu Davi, o rei de Israel !" Na mão,

a funda, tal como que o pastor levava os rebanhos ao encontro

das batalhas. Ali, vitorioso, em plena Itália, afrontava calmo e

confiante, senhor de si, o impossível, a lhe imaginar viável.




- Morra tu, gigante! Aqui estou agora e estarei para sempre.

Entre as montanhas e os cercos, o círculo das muralhas e os

seus quatro portões cardinais, entre maravilhas e viajantes, a

massa cristalizada das residências.
  
- Tomo então, deste duomo com a escadaria, seus namorados e a lua

ao centro - dizia. Por toda volta arruma-se o gentio - "tutti buona

genti" - seus duques, condes e cardeais. As casas retas, cômodas,

se elevando conforme o capricho ou prestígio, tendo-se em conta

que o crédito acompanha os milagres. As cores claras,luminosas,

se irradiam.




Toda esta aura - esses braços são vias, ruelas estreitas

que tanto sobem como descem, à esquerda ou à direita, conforme

se quiz, e se encontram mais adiante:

- Será meu amado labirinto. Ali, a Piazza de la Signoria onde ardeu e

queimou-se Savonarola, a praça do mercado e a gironda de bronze

a chamar os fantasmas do Uffizi e as saudades na distância. A Ponte

Vecchio a suster lojas, amantes e mantas coloridas.

                                                                                                                  pintura de Canaletto


 - Veja gigante, o Arno, aquela torrente sinuosa correndo, cortando

a cidade na manhã; o Belvedere, as lambretas e os flashes, a multidão

que dali vê o céu e a terra ter a mesma cor do mar - tão longe que

ninguém se lembra mais que exista prodígio maior que não seja

este abaixo deste céu e acima desta terra de Florença.




Vê a arquitetura como respira mais alento suspendendo tantas

cúpulas, cornijas e arcos; como o sol penetra as sanefas e a vida

das "famiglias" nos palácios: o Strozzi, o Rucelai, o Pitti.
                                 
                                                                                                                                          pintura de Canaletto


E os morros de ciprestes, os jardins, a riqueza dos chafarizes

riqueza, a vida suspensa das estátuas. Vê, tudo é monumento.

A bela Florença, minha outra noiva, minha outra Jerusalém.

 Aqui, ressuscita o homem e uma pedra, ao mesmo tempo,

como o casamento da letra e do poeta, como o céu e a terra

da pequena Toscana. Aqui também, o mesmo poder que venceu

a ti , filisteu, fez brilhar o homem, domador do universo e das

esferas celestes, do escorço e do sobrenatural. E, destarte tanto

ofício, criou também um outro universo em pura harmonia,

porque é espelho deste projetado em imagem e perspectiva,

poesia e matemática, serenidade. E vieram Giotto e Massacio,

Mantegna, Francesca e Dante. E Buonarroti e Leonardo, maiores

do que tu, gigante. E também Bocaccio e Pico de la Mirandola,

o Donatello. E mais Marsilio Ficino, Boticelli e Pico de la Mirandola,

o meigo Rafael. E com eles, as aparições, ressurreições, madonas

virgens, bacantes e deuses aqueus, festins esfumattos, anjos aos

borbotões, santas ceias e uma Gioconda. Eram os esquadrões do

assombro e da metafísica a incendiar trevas, a abarrotar o tesouro de

sonhos dos Médici.

                                                                                              Escola de Atenas - pintura de Rafael Sanzio


-"Maledicta" - vociferava Savonarola. Porém, acima dele e da malícia

de Maquiavel, das orgias e crimes de um papa, renasce o homem

colorindo os muros da triste Roma.

                                                             escultura - David de Michelângelo


       E, ao fundo do turbilhão, permaneço aqui nesta tranquila

Academia. Vivo e magnífico. Onde, depois de muito viajar,

descobri este lugar por intuição e graça divina - a razão que

me guia por dom celeste- o esconderijo perfeito de minha

responsabilidade, a vigilância eterna e em pessoa dos meus feitos.

                                          David e a cabeça de  Golias - pintura de Caravaggio



Pois, justo ali, onde me fiz ereto corpo e fortaleza a ostentar a

vitória da pureza e da coragem, exatamente ali, a arte me fez

renascer, por sobre o exato lugar onde escondi há tanto tempo,

a tua cabeça decepada, fonte de toda tua escuridão, Golias de Gath,

 para que não conspurque mais a Terra Santa e toda vida sobre a

Terra. E onde, para compensar o teu mal, ali enterrado, o Senhor

fez florescer a mais luminosa cidade - o milagre da razão

- a minha bela Florença.





O autor deste texto foi Pino Alti, escritor da década de trinta.

Escreveu diversos livros e manuscritos, os quais poucos

chegaram às nossas as mãos. Homossexual, desapareceu

durante a década de quarenta em um campo de trabalho.

Este é o seu último manuscrito. Sobre o cabeçalho escreveu :

"o estranho monólogo-poema-memórias de um rei de alma e

destino cativos às pedras, aos homens, à um mestre

e uma cidade". (nota do editor)