quarta-feira, 28 de abril de 2010

A premonição e a verdade

                                                                                                                foto -arquivo megacidades
                                                                              ônibus 415 - Usina-Leblon


Um dia, lá pelas sete da noite, depois de um dia cheio, já cansado,

 parei num ponto de ônibus solitário em Ipanema, na altura da

Praça da Paz.

Fiz sinal à um ônibus, que me pareceu que me convinha, o qual

parou de imediato. Ao segurar no corrimão, do lado de fora do

ônibus - o 415, chamado de Usina/Leblon, pretendendo tomá-lo

para ir para casa no começo do Leblon, que é uma distância

relativamente próxima de onde me situava então, senti uma

súbita enxaqueca - uma compressão enjoativa dentro do meu

crânio, que vinha da nuca, contornando a cabeça, até a

minha fronte acima dos olhos.



Acompanhando essa sensação muito desagradável, uma ideia

 me surgiu,de repente, em minha mente como uma realidade

concreta - a de que ia ser assaltado. Acreditei sem raciocinar

e hesitei em tomar aquele ônibus, temendo que ali se encontrasse

o possível assaltante. Mas, como sou formado em psiquiatria,

apesar de não exercê-la, me auto critiquei me chamando de

paranóico e delirante e coisas afins.






Entrei no ônibus meio cabreiro, porque aquela ideia não me

abandonava e me sentei num lugar no meio do ônibus.

Para mim aquele acontecimento, seria um momento, conquanto

apavorante e horrendo, como a dor que não me largava, mas

com certeza inesquecível, porque eu jamais havia sido

assaltado antes em minhas dezenas de anos vividos, pelas graças

de Deus e de todos os santos.

Mas, diante da perspectiva tenebrosa que me aguardava,

conforme os presságios que me atingiram, constatei, para meu

alívio, que o ônibus se encontrava praticamente vazio, só sendo

usado por uma velhinha que se sentava lá na frente.


Ri de mim mesmo e de como eu, tão bem assessorado por

meus anos de estudo superior e trabalho em uma área

especializada em coisas desse tipo, podia cair em tal cilada.

Tive vergonha de que eu, um dia, me dispusesse a contar

para alguém tal maluquice.

Entretanto, duas coisas não me abandonavam : - a ideia

obsessiva de que ia ser assaltado e a tal da torturante

cefaléia.






O ônibus avançava pela rua desocupada de maneira vertiginosa,

não parando em nenhum ponto de ônibus, mesmo porque não

havia nenhum passageiro querendo pegar um ônibus que já se

dirigia para seu ponto final de parada e que ficava bem próximo

dali, portanto de uso inútil para a esmagadora maioria do povo.

E assim foi, ele disparou através do trânsito pegando todos os

sinais abertos, até que virou na rua em que havia seu ponto final,

meu objetivo também, visto que morava algumas dezenas de metros

adiante. Então parou - pegara um sinal fechado.


Meu prédio - eu morava na época com os meus pais na época,

depois de uma fase difícil onde o apartamento que eu alugara

desabara com tudo o que tinha dentro - era um apartamento grande

e claro, bem situado, de classe média alta, num terreno apossado

pelos militares da ditadura, o governo da época, e com uma vista

cinematográfica para toda Lagoa, para o Cristo, além de ver o mar

e toda Ipanema - um lugar privilegiado por seu visual, chamado

de Selva de Pedra, por causa de uma novela de sucesso daqueles

tempos. Tinha sido adquirido graças, eu diria, ao esforço

sobrehumano de meu pai e a força de um tio meu que era

militar na época.

E o ponto de ônibus era logo ali pertinho.


              Vista da janela da sala do apartamento dos meus pais


Porém, o ônibus havia parado no sinal exatamente antes do

quarteirão final e, para meu espanto, abriu as portas e

deixou subir pela frente, para não pagar passagem,

uma galera que identifiquei de imediato como sendo uma

"tchurma" da Cruzada de São Sebastião, isto é, dos prédios

construídos num terreno público, que na época havia sido uma

favela às bordas da lagoa, chamada Praia do Pinto, que

perpetuava desde suas reminiscências a existência de um

refúgio dos escravos fugitivos no século dezenove, chamado

de Quilombo do Leblon, que se transformara numa favela,

perto da Chácara do Céu, que depois havia sido removida

para ali, para se vender os terrenos.

Com a vinda dos nordestinos, crescera se estendendo pelas

beiras da Lagoa Rodrigo de Freitas, transformando tudo

num esgoto fétido e contaminado.

                     
                                                                                                             foto Arquivo Nacional - reprodução
                                                 Favela da Praia do Pinto


Essa favela se incendiara em 1969, levantando um clamor nacional,

pois se suspeitara que o próprio governador e sua assessora

haviam tramado para erradicar aquele núcleo de favelado de

uma área perto de uma área de classe média alta e rica, porque

não foi a única favela a se incendiar naquela época, de maneira

muito parecida.

                          Registro do incêndio da Favela da Praia do Pinto


O terreno que vagara, daquela comunidade carbonizada e expulsa,

 fora tomado pelo exército que ali resolveu construir prédios civis

de moradia para os próprios militares - isso no inicio, mas, depois,

é lógico que não fora bem assim - com o passar das décadas tudo

muda de mãos .


                                                                                                              foto Arquivo Nacional reprodução
                                                Cruzada de São Sebastião


Porém, a Cruzada havia sido erguida antes desse incêndio e

dessa época, sobrevivendo à este, por ser uma série de prédios

modestos e sem acabamento de seis andares de cimento e

tijolos e não barracos miseráveis de pau à pique como todo

o resto, sendo executados com dinheiro da paróquia por um

bispo muito poderoso e de tendências claramente socialistas

e democráticas, Dom Hélder Câmara, ao qual sempre admirei

por sua coragem e desprendimento.

Por um acaso, ficava logo ali, pertinho do ponto final e, é claro,

também próximo da minha casa.


Eu procuro não ser preconceituoso, mas diante das

circunstâncias, eu pensei de imediato que, se houvesse

alguém para me assaltar, teria que ser logicamente alguém

daquele bando - não me via sendo assaltado por uma

velhinha de setenta anos, obviamente.


Me levantei carregando um saco plástico amarelo de

supermercado em que eu levava duas fitas cassetes,

uma gravada com um concerto de Bach para Piano e

orquestra, e outro com uma coletânea de canções de

João Gilberto, também uma nova edição de um livro

que acabara de comprar e que há muito procurava

- A Fugitiva de Marcel Proust, além de um uniforme

de ginástica, com camiseta e short novos em folha, também

récem adquiridos com etiquetas e tudo.

Passei por eles, que não me olharam diretamente, porque

conversavam com o trocador, que devia conhece-los, e

esperei o ônibus chegar no ponto final.



                   A fugitiva de Marcel Proust
                     na edição que eu procurava




                                                                                            

                                                                        Concertos para piano e
                                                                        orquestra de nºs de 1-5&7
                                                                        com Leonard Bernstein- solo

O cd fatídico de João Gilberto


o ônibus rapidamente parou em frente do ponto, que se encontrava

lotado de gente que voltava do trabalho, principalmente senhoras

carregando bolsas e embrulhos e meninas que deviam ser

domésticas diaristas cansadas e loucas para chegar em casa,

depois de limpar, cozinhar e aturar as frescuras das madames

e dos seus filhos mimados e insuportáveis.


Interior do ônibus


Desci as escadas pensando que, se alguém ali poderia ser assaltado,

era, infelizmente, alguma daquelas mulheres do ponto final,

dando sopa com as suas bolsas e trouxas de roupas, e sem nenhum

macho valentão presente para protegê-las desse safado mundo

cão. É necessário acrescentar que, aquela área, era em frente

à décima quarta delegacia de polícia, que poderia ser vigiada

de lá apenas com um lançar de olhos por qualquer policial,

de tão próxima que era.


Embora a dor de cabeça não me largasse nem um segundo,

depois daqueles, praticamente, quase cinco minutos que o

ônibus demorou para me trazer de onde me encontrava até

ali, parei na porta do ônibus, em frente à fila que aguardava

no ponto para entrar no ônibus, olhando todo mundo nos

olhos e atravessei para o outro lado da rua, observando às

minhas costas, cautelosamente, se alguém não me seguia,

num comportamento totalmente persecutório, isto é, de

quem se sente perseguido - mas, a rua estava vazia.

Do outro lado, um pouco mais adiante, tornei a olhar para

trás, tentando ver se alguém me seguira, o que verifiquei

que realmente não acontecera, pois para trás a calçada

estava deserta, iluminada apenas pelos esparsos postes de luz.



E foi só neste instante, que me acalmei e relaxei, passando a

ansiar apenas chegar em casa para tomar um analgésico e

me distrair de tudo vendo televisão, como eu merecia,

depois daquilo tudo.

Pensei nos telefonemas que havia de dar, quantas calorias

poderia digerir para não engordar e todas as coisas que

comumente penso antes de chegar em casa, já satisfeito de

que aquela ideia maluca não tinha se realizado, e pensei que

a minha carteira possuía ainda algum dinheiro, mais quarenta

dólares, que não precisei trocar para reais, e que fora o que

sobrara das compras que fizera.


Foi quando senti, algo subitamente, como uma mão dando

um tapa em minhas nádegas, me alisando a minha perna

direita, desde dos bolsos até as meias.

À princípio, achei que pudesse ser uma brincadeira sem

graça de algum amigo, ou mesmo o gesto desavergonhado

de algum tarado da noite. Parei e olhei assustado para

baixo e me surpreendi em flagrar uma mão audaciosa dentro

das minhas meias, as vistoriando, como se quisesse achar

algo que eu ali tivesse ocultado.

Então, senti uma pontada gélida e real no meu pescoço.





Foi quando ouvi uma voz baixa, sussurrando em meus ouvidos,

que se eu me mexesse eu morria, que ele ia me apagar, e que o

que eu tinha comigo não era mais meu, e sim dele, agora, e que

eu devia entregar tudo pra ele, se quisesse sair dali numa boa,

sem me arrepender de ter feito alguma bobagem e me dar mal.



Levantei meus olhos em direção a voz que em sussurrava

em meu ouvido e vi, paralisado, que era um daqueles

rapazes do ônibus que me seguira de algum modo a que

eu não percebesse, talvez pelo outro lado da rua, e ali

estava, me espetando a jugular do meu pescoço com um

finíssimo estoque, como uma agulha de tricô enorme de

aço, feita de um vergalhão de ferro, afiada como uma faca

e que brilhava sinistramente no escuro.




Seu rosto de pele escura, os olhos esgazeados e negros, o tufo

despenteado de cabelos ásperos e selvagens meio coberto pelo

capuz cinza de sua jaqueta de malha, eram iluminados pela luzes

de néon dos postes da rua, parecendo aumentar a expressão de

filme de terror. Formava em sua expressão, como uma máscara

do que se estereotipa o que seja um demônio, coroado por sua

bôca com dentes proeminentes e afastados no meio, um espaço

negro e vago entre os dois incisivos, como se ali, naquela cara,

como a de semblante de um vampiro horripilante que estivesse

pronto a morder e sugar a sua vítima, houvesse sido

materializada a anormalidade e o vazio furioso e disforme

de seu caráter.

Não ousei mexer um músculo sequer e entreguei tudo como

ele queria, pois sabia que a melhor forma de manter algum

controle sobre a situação era não reagindo, como toda

pessoa sensata faz, e evitando que ele exercesse sua

violência prestes a surgir, mantendo-se bloqueada por

estar sem razões para isso.

O seu capanga, um garotão branco vestido de calça lee e

camisa social listrada e desabotoada, mostrando o seu peito

adornado com um colar dourado com uma figa, pegou de

minha mão a sacola, que ainda pensei que pudesse recuperar

depois, pois o que quereria um ser como aqueles de uma fita

de Bach ou João Gilberto? Poderia ele ter alguma fruição do

livro de Proust? O uniforme de ginástica serviria para ele, que

claramente não vestia o mesmo manequim que eu, sendo

magérrimo e bem alto? Bom, talvez ele tentasse os vender mais

tarde para algum erudito mambembe, se é que isso existe.


Eu tremia todo, como se alguma descarga anômala e

arritmica se deslocasse por mim, como uma onda gélida

e horripilante provocada por imagens fantasmagóricas que

me assombrassem e não figuras reais em carne e osso,

materializadas naqueles dois marginais e infelizes criaturas

que exerciam ali seus crimes, diretamente em cima de mim.


Não podia também acreditar que eu tivera, intuíra, uma

premonição, um pensamento que denunciava um acontecimento

futuro e que este se materializara dramaticamente, magicamente,

para mim e que ainda não sabia qual seria e como seria o fim de

tal desventura medonha, pois o pensamento só me avisava do

acontecimento e não do desfecho.


Mas não durou muito tempo. Logo, ele pediu para que

eu vazasse dali devagar, sem olhar para trás nem naquele

instante, nem depois, e nem uma vez só, porque aí as coisas

iam ficar pretas para mim, ameaçou - o que, é claro, eu fiz

sem vacilar. Pensei que talvez pudessem me acertar pelas

costas, para garantia deles, mas não tinha nada a perder,

não poderia lutar contra dois caras armados e mal intencionados.

Caminhei calmo e lentamente para o meu prédio e não

acreditei quando atravessei a portaria, como se nada tivesse

acontecido e peguei o elevador para o oitavo andar, minha casa.



              O lugar exato do assalto na Av.Afrânio de Mello Franco


Quando cheguei lá, mal eu bati a porta, já me telefonavam da

Cruzada, conforme a voz se identificou, que achara meu

telefone em minha carteira e se prontificava a me entrega-la,

sem o dinheiro, claro, mas com todos os documentos, isto é,

se eu fosse lá, naquela hora da noite, buscar. O convenci, então,

de a entregar na portaria do meu prédio, pois o forçara a

acreditar que fôra agredido e que estava um pouco

machucado e que não conseguiria chega até lá - é lógico

que eu não me predispunha a ser assaltado novamente num

lugar tão suspeito e temível quanto dentro da Cruzada

aquela hora da noite. Ele afirmou que me entregaria, porque

havia ainda pessoas legais na Cruzada, e que ele era uma

delas, e assim foi. Depois de algum tempo o porteiro me

interfonou dizendo que alguém me procurava na portaria.



Eu desci com o meu pai, deixando prevenida a minha mãe e a

empregada e com o telefone da policia, pedindo à elas que

vigiassem da janela, para que se algo suspeito ou inesperado

acontecesse, ligassem para a policia imediatamente.

Na portaria, do lado de fora, me aguardava um jovem mulato

de aspecto humilde, circundado pelos porteiros e garagistas,

que já sabiam da história. Ele me cumprimentou e começou

um discurso que eu entendia que era, lógico, um pedido de

dinheiro em troca da carteira.



Mas, afinal, ele acabou me entregando a carteira sem problemas,

se justificando, dizendo que encontrara a carteira na rua, que

poderia ter pedido algum dinheiro para devolvê-la, como eu

pensei que ele já fizera. Eu retruquei que todo dinheiro se

havia ido com o assalto e por isso não poderia gratificá-lo,

pois sabia se tratar de um segundo golpe para me tirar mais

dinheiro, que eu já previra.

Contudo, não sei porque razão, não sei se a presença dos

porteiros com telefone na mão, e a presença do meu pai,

o impediu de algum ato violento, ou se, como ele falava,

era mesmo uma pessoa legal da Cruzada. Ele me

entregou a carteira, repetindo o mesmo discurso de estar

entre as pessoas legais do seu lugar e foi se embora.



O episódio terminava sua fase real, para entrar na fase de suas

consequências psiquícas e existenciais, porque então as perguntas,

questões de ordem transcendentais e afins, começaram a pipocar

em minha mente sem que eu pudesse controlar, pois realmente não

aceitava o acaso - que por acaso tive dor de cabeça, que por

acaso na hora exata da dor de cabeça viera aquele pensamento

obsessivo e que por acaso o pensamento se realizara quase

cinco minutos depois em outro bairro. O irreal se transformara

em real, entenda-se numa verdade e isso transtornava toda a

noção do que eu tinha do que é uma verdade. A ciência é o

estudo do real, mas como entender que esse real pudesse

ser previsível por intuição?


A intuição existe, a ciência, a psiquiatria, a psicanálise aceitam ,

mas não explicam muito exatamente como se dá. Como isso

realmente acontece? Existem teorias, mas nenhuma

comprovada ainda.

Intuição é uma palavra derivada do latim - o verbo intuire que

significa "olhar atentamente". Alguns psiquiatras, vindos de uma

origem yunguiana, acham que pode ser uma análise da

intermediação do inconsciente do lado esquerdo do

cérebro, racional e objetivo, com o do lado direito, sensitivo

e subjetivo. Daí a apropriação do verbo em latim que faz uma

espécie de tradução da sensação.


Mas, quanto à mim, não acho que eu olhei, ou melhor

"olhei atentamente" com o meu inconsciente algo que poderia

analisar de qualquer forma possível. Eu não tinha um

pensamento como " eu acho que" , mas uma idéia como

uma certeza absoluta!

Tudo muito estranho! Haveria algum modo de evitar o intuído,

ou eu estava marcado para que ele acontecesse comigo?

Adiantaria passar o tempo em alguma loja, folheando um

livro, ou visitar algum amigo, como cheguei a pensar no

ônibus, o qual por certo riria dos meus temores, ainda por

cima vindo de alguém de minha formação, para despistar

ou mesmo desfazer o que aconteceria?

Adiaria o desfecho fatal ? E se eu evitasse realmente, como

poderia saber que havia fundamento naqueles sintomas

absurdos?

Haveria alguma função para o metafísico que nos transcende

me avisar? Existiria o metafísico? Onde perceber o limite do

que é crível por ser uma verdade que existe de uma

subjetiva e de origem indiscernível?

De que adiantaria saber alguma coisa?


Pois, de nada adiantou a ciência do fato, pois não o

consegui evitar, porque talvez fosse mesmo inevitável

- eu seria assaltado mesmo que elocubrasse mil estratégias

para driblá-lo. Essas questões surgiam sem parar, também

de maneira compulsiva. E continuam até hoje! Já cheguei

até a cronometrar o tempo que o ônibus levou até chegar ao

ponto final, para compreender qual tempo exato que tive

antes que aquela intuíção, da única vez em que eu fui

assaltado, se realizasse.

Continuava não aceitando, descrente.

Seria um acaso mesmo?


Como entender o que se passa no cérebro, diante do

que se passou para mim?

Será que previ o futuro distante em quatro minutos antes

que acontecesse?

Seria um produto da velocidade do pensamento, ou das

ondas de energia que eram provocadas por descargas

elétricas como em todo eletroencefalograma constatamos,

que no caso seria mais rápida que a velocidade da luz,

a ponto de fazer ter um pensamento que só dali a cinco minutos

eu poderia ter tido, pensava eu, delirante? Ou só, apenas, um

simples fruto de um fortuito acaso. Para mim, é como o

surgimento de um desses acasos absurdos, que colaboram

para que pensemos que a vida jamais será entendida em

sua plenitude e que para sempre estaremos diante do mistério

insolúvel da estrutura miraculosa do sem fim.


Acho que nunca saberei a solução e sua última consequência

seja, finalmente, a de servir só para escrever este texto,

me exorcizando de vez de ser mais um daqueles em que

a metafísica trouxera a ponta de um fio a ser desenrolado,

para que saísse ileso de um labirinto em que vivia à espreita

o monstro da insanidade, o Minotauro do não saber, o caos

da razão, ou apenas um contato com outra dimensão.


PS:

Na época, não dei queixa à polícia, pois acreditei ser inútil.

Porém, anos depois, identifiquei o assaltante que me ameaçou

com o estoque e com os inesquecíveis dentes separados na

frente, quando me deparei com ele novamente, e também

senti algo parecido com o que havia sentido da outra vez.

Mas, frente à frente à ele, em outra situação pior do que

essa - no famoso sequestro do ônibus 174, que ocorreu

em frente quase da minha casa, aqui no Jardim Botânico.

Ele era o sequestrador conhecido como Sandro.

Soube que dormia, naquela época, na porta de um hospital

perto dali,o Miguel Couto, que nunca matara ninguém, sendo

uma vítima de uma vida terrível e altamente trágica, e que

assaltava pessoas no Leblon para poder sobreviver.

Mas isso já é uma outra história.


                                                                                               foto - O Globo
                                O tal Sandro no sequestro do ônibus 174






A poesia




ela pegou o seu livro de poesias, fez uma dedicatória

e deu pra mim

e eu disse que ia lhe responder por escrito

pra quê que eu fui falar isso se nem sou poeta?

pra mim poesia tá por aí

o quanto de poesia passa à vista!

para mim pode ser como passats
                                       fiats
                                       kombis
que rolam pelas avenidas, são os ônibus que trafegam até

os subúrbios, enquanto os pobres mastigam violência,

cospem fogo

ela me encontrou e disse: - você hein! nem um telefonema!

e eu disse: - te escrevo é melhor!

porque? pensava comigo mesmo, como pudesse dar conta

de alguma coisa

penso

penso

abro porta

fecho porta

tranco

abro um jornal

leio

me arrumo

me visto

e saio

abro porta

fecho porta

tranco

e a poesia?

deixo lá sobre o sofá, o seu livro de capa azul, azul

porque não escrevo?

porque a vergonha?

eu sou pretensioso talvez, ou talvez seja nada

tinha quase quarenta naquela época

já fiz de tudo e permaneço como um grão de areia

a lembrar da pedreira daonde eu vim




meu pai é cruz

minha mãe é dia

me criei na praia, não sou nada, sou ar

mas a praia agora é diferente daquela praia que tinha pescador e dois

garotos que iam nas ilhas Cagarras, logo ali em frente, mas muito

quilômetros mar adentro, remando numa frágil canoa de madeira

e voltavam com cocos, com conchas, estômago e músculos

estourando, vibrantes, felizes a se esculpirem em bronze e 

mostrando tudo que haviam trazido de lá de longe, das ilhas

ondulantes que víamos como parte de um cenário de nossos

mergulhos diários, até o dia que a noite chegou e nada de conchas

ou cocos

                                                                                                               foto de Marc Ferrez



foi uma noite triste

foi mesmo, mesmo para quem não entendeu as

luzes na areia que sinalizavam pelo negrume da praia à procura

de alguma resposta ao longe

e de nada adianta lembrar-se , foi-se

silêncio no horizonte

neste momento, a areia está quente, o sol no meu rosto,

todo o céu azul, azul

um pivete luta na praia com um rapaz, logo vem a sua turma

e a do outro também

as cadeiras voam

também as barracas

os sanduiches e as cervejas

a gritaria

tudo vai pelos ares

eu estou bem longe a imaginar quando virá a onda

o macaréu

o maremoto que vai afogar a cor

vai quebrar as vidraças

arrancar as pedras portuguesas das calçadas

e deixa-las pra lá do pantanal e da minha passividade

será a onda espumante, negra, conquistadora que irá transformar

a mata atlântica e arrancar os espinhos da minha carne

absolvição

poesia





e me deixo levar nessa correnteza sem ver que, em algum lugar

do mundo


um negro atravessa a Quinta Avenida e conserta, sobre o seu

nariz, o óculos brilhante e verde


uma mão lanhada retira um peixe arfante, amarelo e oleoso do

rio Javari


um ator enforca a atriz numa cena percebendo o quanto

ele a amará na cena seguinte


abre-se um olho irrigado de vermelho e pinga-se quatro gotas

de Lacril até que a irritação desapareça


um pastor prega que de embriaguez e de dor te encherás

do calix de tua irmã Samaria


um quadrúpede empaca diante do ônibus cheio de gente

e zunzum dos insetos


um tapete mágico sobrevoa as torres das refinarias

incendiadas por foguetes terra terra


uma mulher, como uma santa, se veste de palhaço e atua nos

hospitais, para fazer graça para crianças enfermas e salva-las

da tristeza, ajudando a cura-las, por amor e por alegria e depois

escala o Kilimanjaro para poder entender o que é o desafio

de sentir o céu fora de si 


um artista cria um mundo no papel, sabendo que nada é

impossível, mas que tem a sua hora de existir e para

refletindo e enxergando um mundo que chegará algum dia


um mulato de morro penetra a sua nega mordendo seus braços

de deusa Shiva


uma mulata sacode os peitos, encobreia, aperta e quase engole

todo o seu Ulisses


alguém coloca  gasolina no seu tanque, sem sentir que os vapores

do combustível são um perigo terrível e ameaça a explodir tudo

pois alguém fuma ali por perto


duas drosophilas se acasalam numa retorta transparente acoplada

a um contador Geiger à 0 graus centígrados


a íris azul, azul de Brad Pitt espelha os refletores, iluminando

um abismo sobre o Colorado


o corpo de uma mulher de meia idade é encontrado semidespido

desfigurado, cheio de moscas, enquanto o investigador desconfia

do seu marido de pouca idade


em algum lugar do mundo existem Das Dores, Franks, Brendas

Severinos, Freds, Lulas, Marias,Maries, Marys, Marischens

Maricotas, Dortemunds, Elinaldos e Socorros que  nascem

crescem, se acasalam, procriam e morrem como gado


em algum lugar do mundo

tudo que possa acontecer é apenas

um movimento descartado, que passa por meus olhos e deixo

escapar, porque não faz parte dessa longa cerimonia elétrica

que são os meus sentidos, a minha percepção descuidada

porque penso nessa bobagem que é a onda exterminadora

deusa dos surfistas, e prefiro me voltar aos pensamentos

da minha juventude, diante da impossibilidade de resolver o

assunto poesia


Deus deixa rastros na areia como as vírgulas nas poesias 

reticentes

espaçadas

silenciosas

e eu preciso ouvir uma voz só

mas que me complete em pura criação

em azul, azul

absurda

poesia