sábado, 7 de agosto de 2010

subi a negra montanha



subi a negra montanha
conhecê-la é o meu fim
a encosta é cruenta, mas apoio os pés me equilibrando na ponta de cada rocha pontiaguda
e de vez em quando escuto um punhado de terra escura com areia e pedregulhos despencando
até lá embaixo
até onde não vejo mais o fim e a imaginação não alcança
até o abismo dos dias perder-se na memória do sem fim e do tempo que se apaga





subi a negra montanha
durante esse tempo, penso em tudo que sempre me acorrentou àquela direção
                                                                                           àquela minha estrada reta e rasa
                                                                                           àquela totalmente previsível
                                                                                           àquela que era assim
                                                                                           perfeita por nada se questionar
                                                                                           e por isso ser aceita por todos
                                                                                           comum acordo ao lugar nenhum



até quando, de repente, ela se eleva à minha frente
surge abruptamente como uma vontade de alguém
                                                            a me questionar
                                                            a me colocar uma grande incógnita em  meu caminho
                                                            e que se faz como um temeroso afrontamento
                                                            um desgosto gigantesco em aparência
                                                            gostando de me fazer pouco
                                                            duvidando do que eu estou afim
                                                            do que sou capaz
                                                            do que é meu destino inadiável
                                                            a obcessão plena em minha vida
                                                            pelo desafio que só eu posso vencer
                                                            porque tem o meu nome
                                                            porque eu quero
                                                            porque eu acredito
                                                            porque eu o vencerei





subi a negra montanha
escalo esse deserto de pedra numa luta a tocar clarim
não existem milagres
tudo que existe tem explicação
a razão que não existe para o que se sabe, não sabe ela mesmo de mim
mas se ela existisse com a lógica, a própria não seria desse jeito
porque nem em tudo há coerência
não existiria sentido de sentir sem te fazer conhecedor da dor, a única que sabe porque vim




subi a negra montanha
e vejo que tudo que toda criatura vê
e jura que é o resumo do que está a perceber
mas quando chega à montanha, ao cume
com a paisagem a se resumir pelos olhos, percebe então que tudo é só um milagre
começando a agir - o imaginar que há em você
que sem o limite do horizonte, entende que assim a vida se resume
além do A à Z





subi a negra montanha
aí tudo faz sentido
na direção que o céu está acima
agora é o céu que teu corpo toca
não me desfaço então de mim, porque já começo a entender tudo
tendo visto que o vi até hoje, o que se passou torna a ser refeito
com tudo que a nossa mente invoca
e o que não fazia sentido até então
é o que mais se encaixa no horizonte de eventos
é o que faz tudo se ajustar ao seu caminho
como toda dor é agora tem seu porquê
como todo farinha de trigo, que faz o pão que nos alimenta
passa antes pelo seu moinho




subi a negra montanha
prefiro olhar o luar daqui
e lá pra baixo o mundo continua
pois quando, em espanto, o que não via por ser oculto, por ser claro e exposto
se revela ali subitamente, sem sobreaviso
e por isso, rio e grito, quando descubro que ali também há felicidade
se a montanha, surpreendentemente, ao acaso, a ti invoca
quando, do abismo, um sopro de seu igneo coração derrete o gelo
e o vapor gelado de luz se atravessa e dos confins um arco íris se desloca
reflito sobre o frio que me circunda e me digere quando você não me toca



subi a negra montanha
e até ali, meu sentimento petreo se racha em doce quebranto, que em mim fervia
e expõe uma nova abertura, uma nova via, que me desvia do que eu não via
ou ainda mesmo não existia
porque a fiz com minha inocência de se maravilhar com as possibilidades
de um devir feliz e incompreensível
a porta aberta entre o céu e a Terra
que se desconecta da cruel natureza da matéria
e se dirige à inefável e celeste morada da alegria





subi a negra montanha
e vislumbro então um infinito conforto nesse futuro de meu caminho
porque em mim é agora a verdade é o desejo
que a mim agora se encosta
                              afaga
                              toca
                              geme
                              sussurra
                              implora
                              e eu o possuo
                              e o seu corpo é a tranquilidade
                              de um pouso seguro e querido



subi essa negra montanha
e essa montanha para mim é como um o sonho, é quase um nada
e me pergunto que ideia a minha, como eu podia ser tão maluco de tamanha empreitada
por uma montanha que é uma fantasia
delirio transtornado e louco
se podia seguir meu caminho tranquilo
a arriscar a toda a vida que eu ainda tinha
por tamanha insensatez
para me elevar sobre uma rocha perdida erguida
do não se sabe aonde, por não se sabe o quê
que me acena com um caminho em trevas

mas eis que, quando eu assim pensava
entre nuvens e clarões se revela um portão a se abrir
e chego à um salão de arco íris formado e de altas grandezas ao cume forrado
como em gelo e cristal bruto e de bronze dourado
e que a bênção, grandeza e gozo internamente me invoca
só ainda que mais me surpreendo, porque já então sequer imaginava
que tudo isso ali
todo esse sublime, todo esse andor de maravilhas
é apenas onde lhe construi entre as nuvens e o completo êxtase
um lugar só para ti
indestrutível, indevassável
e para sempre
onde todo meu sincero amor por ti aloca

e agora sei
ninguém mais nos separa
ninguém mais nos afasta
e certo disso
senti então um súbito calor que a mim me completa
e era a sua presença enfim
que depois de me fazer entender tudo
me surgiu
por merecimento e dádiva
por alcançar o meu objetivo

então, se fêz meu descanso
o que ali nas alturas não pensei que existisse
que por fim me recebe, sorri, se aproxima
e  me abraça
                 

                                         ilustração por Gustavo Doré