sábado, 25 de setembro de 2010

Reflexões sobre uma folha de papel



Tenho lido tanta coisa minha e todas me deixam desejar!
O papel deve ser o mesmo, o lápis, ou caneta, a pena
e nenhum escreveu uma só linha, uma só letra que me faça com que eu pense :
- está aqui uma obra prima a respirar!

E faço um último ponto, o ponto final, usando de toda energia
cravando a lapiseira no papel esperando que ele grite de dor
sangre ou gema, implore
ou como se eu agisse como aquele gênio italiano
a bater seu martelo no joelho de seu herói em mármore: - Parla!
faço um ponto - o final


                                    foto por Jirel



Eu sou um que escrevo com a incerteza de uma meta
Se a forma é inédita, se surpreende alguém
eu me realizo de fazê-lo conhecer, dessa forma inaudita 
esse rude correr do lápis
para que então talvez acredite que ali está o que não pode se corromper
luz e sombra a serem letras
que são na verdade átomos, íons da minha alma
as portas abertas de tantos não sei,
como o que será
ou de não entendi
deixe eu ver
de : - Que coisa incrível!
ou o que vai acontecer
que se identifica com seu próprio arsenal de espantos
sendo quase como uma coisa que ela escreveria também
um momento seu também
e por isso criando uma estima e uma coerência íntima com o que leu

O que me estupefacta é como ver tudo
                                               sentir tudo
                                               respirar tudo
atônito de não saber que não sei coisa nenhuma
e que nunca saberei mais do que esse sentir
esse respirar
esse abobalhamento de se saber ali, ou aqui,
neste mundo que não se sabe a serventia
e ter que passar por tudo o que passei
passo
e continuarei passando
como todo mundo
sabendo que nesta corrida, ao final, não há vencedor
e não há louvores
a não ser o que regozijamos em fazer aquilo que planejamos
e que deu certo
porque não saberemos quando cruzaremos a reta de chegada
até o momento que não podemos mais fazermos nada 
e então não adianta os abraços ou aplausos
e sim agradecermos a oportunidade
e sorrir

 
Resta então apenas saber que fizemos tudo o que pudemos
com o que tínhamos para realizar nosso objetivo
e que, talvez
esses escritos na verdade sejam flores que nunca olhamos
mas que viverão para sempre!

                                                                                                                                    foto de Philippe Peche





quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Cidade vazia




como chegara até ali?
não me lembro de nada, nem daquele sofá, daquele abajur, o armário branco de portas fechadas, os tapetes persas, o sofá gasto e os retratos emoldurados de pessoas sorrindo em cima da mesinha em um canto esquecido, daquele ambiente estranho, desconhecido

como chegara até ali?
não me lembro de nada!
apenas, o telefone que tocava sem parar
e quando atendia
ele permanecia mudo
me questionando
me aspirando toda pergunta
e as dúvidas que surgiam
aumentando a angústia e a ansiedade
que me faziam tentar ouvir
por detrás do invisível silêncio
                                 silêncio
                                 silêncio


voltei ao que me preocupava, pensando nos trabalhos
pilhas de cartas
desenhos a serem feitos
contas a pagar
na preocupação com uma amiga que dava antialérgicos para seu cachorro
na mamãe, que perdera a dentadura em algum escaninho da casa
e de como explicar para ela como deveria tomar seus remédios
e mesmo me assombrar com a possibilidade dantesca de um meteoro cair sobre a Terra
e tudo se acabar
quando o telefone tornou a tocar na mesinha de cabeceira



desconfiado
alcanço o fone
e lentamente o tiro do gancho para atender a chamada
e digo: - alô, quem fala?
ele responde em silêncio
                         silêncio
                         silêncio

nenhum número no visor do bina denunciava aquela falta de sons
mas que à mim soava como um silêncio de vivos
de respiração entrecortada
de espera
de mãos nervosas a apertar os tecidos de uma camisa
de alguém que aguardava uma declaração que não tinha certeza
da sua insegurança em não encontrar o amor que achava que era o amor de sua vida
transbordante de amores que sempre entendia que eram os amores definitivos de sua vida
ou mesmo de ouvidos atentos à espera comunicado da entrega de algum pacote da farmácia
das compras do supermercado
ou qualquer pessoa que poderia ser alguém que dividisse tudo em antes e depois

isso me apavorou porque
nesse instante
entendi que também tudo à minha volta era um contumaz aspirador de percepções
de ruídos
de tato
de calor
de qualquer sensação
ou percepção de uma companhia à minha volta
e que tudo entorno era um compacto, absurdo, agudo, um doído silêncio
                                                                                              silêncio
                                                                                              silêncio





e os pássaros não voavam mais ou pousavam em algum galho que farfalhasse
a rua estava deserta
asfalto todo visível e sem trânsito e por onde folhas de jornais voavam livres ao vento
calçadas limpas de dejetos, homens e animais
as lojas abertas e iluminadas estavam sem fregueses e pareciam não ter mais vendedores e nem caixas
não se viam policias
táxis vazios e sem motoristas jaziam de portas abertas, largados pelo meio da avenidas
e todos os sinais sinalizavam indefinidos amarelos que piscavam sem nenhum clic-clac

eu tinha a intuição que tinha chegado à pouco nessa cidade
mas nem me lembro como
um intervalo vazio
uma lacuna em negro
interrupção do acontecido
angústia e desorientação

                                                                              foto de Stephen Wilkes Ellis


como chegara até ali?
e pra que?
quando eu queria escutar o barulho de pessoas amigas
quando o calor de corpos me acalmava
quando o olhar sorridente de alguém me dizia  o infinito
quando a presença de quem quer que fosse me restaurava a possibilidade da existência
quando sabia que se existe um momento daqueles
que por mais que tivesse perfuradas as minhas defesas
que me desestruturasse o desabar dos eventos de um dia à dia
que fosse completamente refeito por um simples ato dos olhos de alguém a me dizer o que não precisava ser enunciado
porque era claro, explicito
que era como me rasgasse os véus de minhas defesas
que era como me oferecesse um barco para alguma travessia
que o destino seria compartilhado por ele, aquele olhar
e se outras mão segurassem as minhas então
o meu mundo antigo desmoronaria
sugerindo
em vez de um mundo explícito
outro, vertical e ascendente
ali defronte, resplandecendo
que eu não via
pois que o imaginava lá, além mar, centro das nuvens
e que depois me convidaria para a viagem até essa inesperada terra das possibilidades sem fim
para o paraíso selvagem, mas doce
aquele eu inventasse no delírio mais desvairado
como um leito tranquilo e macio
e aonde tudo que viesse pelo futuro
eu teria uma companhia, ao lado, a me dizer :
fique tranquilo, vai passar
eu estou aqui
ou
felicidades
essa alegria é pra você

me dei conta então do desaparecimento de tudo à minha volta
tudo agora era vácuo e amplidão
e o silêncio
    silêncio
    silêncio
só com o telefone contava para ter ligação com alguém
um ser exterior àquele vazio
ao não ser
que era aquele lugar


                                                                                                                 foto de Marvin Newman



então decidi correr atrás da única ligação que eu tinha com o exterior
o encontrar seguindo aquele fio
e o arranquei da parede
e nervosamente o segui através de um sem fim de corredores
de mil quartos assombrados pela meia luz
outros mais iluminados, mas todos agora tão familiares
pois, chocado, percebi que eram todos os quartos da minha vida
que da minha memória que voltavam ao meu redor e se construiam à minha volta
e assim os percorri cabreiro
os explorando como já os conhecesse , como conhecia mesmo

através quartos cheio de brinquedos infantis
através de salas desmobiliadas onde festas viveram e sujaram o chão com doces
através do saguão mudo sem ninguém a passar
através de escadas mal pisadas porque usava-se mais o elevador
através da portaria avessa à recepção
através das ruas e dos postes
escalando um à um
até chegar ao seu cume
aonde me orientava e descobria tornava a arrancar dali o fio de minha salvação
e o enrolava em um cabide sem roupas
por quarteirões sem fim
por espaçosas avenidas
por becos e praças e mercados
e estações, ruelas, bordéis, pontes e estádios
por cabines desocupadas aonde outros telefones balançavam desligados no ar tristes e abandonados
como quem estivesse falando tivesse sido interrompidos por algum cataclisma
seguindo e seguindo sem pronunciar palavra ou desabafo
entendendo, agora, tudo que vinha por lembranças mal ajustadas ou bloqueadas
a correr os dedos pelo fio interminável e quase imaginário de minha comunicação com o que há
e o segui, segui, segui
enrolando em uma gigantesca bobina
até entrar por um bueiro, indo através do esgoto
entre ratos e baratas
e o negro e imundo troar do silêncio
o fantasma do silêncio
o eco inaudível do silêncio
a ferida medonha do silêncio
para chegar à uma escada
em que o fio tornava a se elevar por uma abertura para o mundo exterior

                                                                                             foto de Rene Groebli


subi até o asfalto quase morrendo
e as calças encharcadas do que eu não queria ver
por saber que de mim aquela lama vinha
não queria ver e continuei a seguir
já me fora demais
e pensava enlouquecido em desistir
mas o silêncio
    o silêncio
    o silêncio

e persisti a seguir o fio
até a praia
e me despi, me lavei, mergulhei nas ondas
e me purifiquei, me livrei do que não era para mim o que eu sou
e me cobri de sal, rolei na areia, tornei a me banhar
e me deixei flutuar, se ir a boiar tantos erros inverossímeis
para sempre livres e perdoados, se esquecendo

acima de minha cabeça aturdida
tresloucada e ansiosa por um gesto afetivo
por um olhar de boa noite
por um abraço
por uma voz que me animasse
e servisse de entorno vivo a pulsar
por algo que vivesse e me desse a razão
para que eu me permanecesse na paz
que eu sabia que ali ainda morava
por algo que me tirasse desse circo imóvel
por uma ave a traçar um voo
ou até um morcego que denunciasse
algum pomar noturno e feliz
em que eu pudesse em consolar do que imaginava ou não do impensável
que podia abrir suas portas através de mim
um cartaz apontava  - saída

à minha frente uma estação ferroviária
onde uma locomotiva imensa e seus vagões pareciam devorar quem os usasse para sair dali
e da sua chaminé antiga desse monstruoso cavalo de ferro à vapor
uma coluna cinzenta e quente brotava
vomitada por rolos de fumaça negra
e em suas laterais
placas explicavam por anúncios
Minus Taurus Linha Férrea e Cia

e agora, via já acima de mim, outra placa
que dava boas vindas
à quem ali pudesse chegar:

Benvindo à Cidade da Solidão
entre se precisar
mas, para sair, é preciso ter o bilhete Coragem
a próxima estação é a Cidade do Destino
saltar à esquerda
Boa Viagem!

devolvi o carretel com fios à uma cesta
onde um outro letreiro explicava

Deixe aqui seu fio condutor

e pensei sorrindo
a solidão maior é esquecer de si
é perceber a possibilidade de não ser
de que nem você lhe faz mais companhia
que aí se resume o Nada
o que nunca virá

e entrei na estação e fui a bilheteria
e quando entrei o único telefone tocou
e eu corri frenético até ele
e o peguei
e então escutei
com a voz que jamais esquecerei enquanto viver
Alô
Vamos sair ?

O trem partia!


                                                                                      foto Rene Groebli