quarta-feira, 28 de abril de 2010

A premonição e a verdade

                                                                                                                foto -arquivo megacidades
                                                                              ônibus 415 - Usina-Leblon


Um dia, lá pelas sete da noite, depois de um dia cheio, já cansado,

 parei num ponto de ônibus solitário em Ipanema, na altura da

Praça da Paz.

Fiz sinal à um ônibus, que me pareceu que me convinha, o qual

parou de imediato. Ao segurar no corrimão, do lado de fora do

ônibus - o 415, chamado de Usina/Leblon, pretendendo tomá-lo

para ir para casa no começo do Leblon, que é uma distância

relativamente próxima de onde me situava então, senti uma

súbita enxaqueca - uma compressão enjoativa dentro do meu

crânio, que vinha da nuca, contornando a cabeça, até a

minha fronte acima dos olhos.



Acompanhando essa sensação muito desagradável, uma ideia

 me surgiu,de repente, em minha mente como uma realidade

concreta - a de que ia ser assaltado. Acreditei sem raciocinar

e hesitei em tomar aquele ônibus, temendo que ali se encontrasse

o possível assaltante. Mas, como sou formado em psiquiatria,

apesar de não exercê-la, me auto critiquei me chamando de

paranóico e delirante e coisas afins.






Entrei no ônibus meio cabreiro, porque aquela ideia não me

abandonava e me sentei num lugar no meio do ônibus.

Para mim aquele acontecimento, seria um momento, conquanto

apavorante e horrendo, como a dor que não me largava, mas

com certeza inesquecível, porque eu jamais havia sido

assaltado antes em minhas dezenas de anos vividos, pelas graças

de Deus e de todos os santos.

Mas, diante da perspectiva tenebrosa que me aguardava,

conforme os presságios que me atingiram, constatei, para meu

alívio, que o ônibus se encontrava praticamente vazio, só sendo

usado por uma velhinha que se sentava lá na frente.


Ri de mim mesmo e de como eu, tão bem assessorado por

meus anos de estudo superior e trabalho em uma área

especializada em coisas desse tipo, podia cair em tal cilada.

Tive vergonha de que eu, um dia, me dispusesse a contar

para alguém tal maluquice.

Entretanto, duas coisas não me abandonavam : - a ideia

obsessiva de que ia ser assaltado e a tal da torturante

cefaléia.






O ônibus avançava pela rua desocupada de maneira vertiginosa,

não parando em nenhum ponto de ônibus, mesmo porque não

havia nenhum passageiro querendo pegar um ônibus que já se

dirigia para seu ponto final de parada e que ficava bem próximo

dali, portanto de uso inútil para a esmagadora maioria do povo.

E assim foi, ele disparou através do trânsito pegando todos os

sinais abertos, até que virou na rua em que havia seu ponto final,

meu objetivo também, visto que morava algumas dezenas de metros

adiante. Então parou - pegara um sinal fechado.


Meu prédio - eu morava na época com os meus pais na época,

depois de uma fase difícil onde o apartamento que eu alugara

desabara com tudo o que tinha dentro - era um apartamento grande

e claro, bem situado, de classe média alta, num terreno apossado

pelos militares da ditadura, o governo da época, e com uma vista

cinematográfica para toda Lagoa, para o Cristo, além de ver o mar

e toda Ipanema - um lugar privilegiado por seu visual, chamado

de Selva de Pedra, por causa de uma novela de sucesso daqueles

tempos. Tinha sido adquirido graças, eu diria, ao esforço

sobrehumano de meu pai e a força de um tio meu que era

militar na época.

E o ponto de ônibus era logo ali pertinho.


              Vista da janela da sala do apartamento dos meus pais


Porém, o ônibus havia parado no sinal exatamente antes do

quarteirão final e, para meu espanto, abriu as portas e

deixou subir pela frente, para não pagar passagem,

uma galera que identifiquei de imediato como sendo uma

"tchurma" da Cruzada de São Sebastião, isto é, dos prédios

construídos num terreno público, que na época havia sido uma

favela às bordas da lagoa, chamada Praia do Pinto, que

perpetuava desde suas reminiscências a existência de um

refúgio dos escravos fugitivos no século dezenove, chamado

de Quilombo do Leblon, que se transformara numa favela,

perto da Chácara do Céu, que depois havia sido removida

para ali, para se vender os terrenos.

Com a vinda dos nordestinos, crescera se estendendo pelas

beiras da Lagoa Rodrigo de Freitas, transformando tudo

num esgoto fétido e contaminado.

                     
                                                                                                             foto Arquivo Nacional - reprodução
                                                 Favela da Praia do Pinto


Essa favela se incendiara em 1969, levantando um clamor nacional,

pois se suspeitara que o próprio governador e sua assessora

haviam tramado para erradicar aquele núcleo de favelado de

uma área perto de uma área de classe média alta e rica, porque

não foi a única favela a se incendiar naquela época, de maneira

muito parecida.

                          Registro do incêndio da Favela da Praia do Pinto


O terreno que vagara, daquela comunidade carbonizada e expulsa,

 fora tomado pelo exército que ali resolveu construir prédios civis

de moradia para os próprios militares - isso no inicio, mas, depois,

é lógico que não fora bem assim - com o passar das décadas tudo

muda de mãos .


                                                                                                              foto Arquivo Nacional reprodução
                                                Cruzada de São Sebastião


Porém, a Cruzada havia sido erguida antes desse incêndio e

dessa época, sobrevivendo à este, por ser uma série de prédios

modestos e sem acabamento de seis andares de cimento e

tijolos e não barracos miseráveis de pau à pique como todo

o resto, sendo executados com dinheiro da paróquia por um

bispo muito poderoso e de tendências claramente socialistas

e democráticas, Dom Hélder Câmara, ao qual sempre admirei

por sua coragem e desprendimento.

Por um acaso, ficava logo ali, pertinho do ponto final e, é claro,

também próximo da minha casa.


Eu procuro não ser preconceituoso, mas diante das

circunstâncias, eu pensei de imediato que, se houvesse

alguém para me assaltar, teria que ser logicamente alguém

daquele bando - não me via sendo assaltado por uma

velhinha de setenta anos, obviamente.


Me levantei carregando um saco plástico amarelo de

supermercado em que eu levava duas fitas cassetes,

uma gravada com um concerto de Bach para Piano e

orquestra, e outro com uma coletânea de canções de

João Gilberto, também uma nova edição de um livro

que acabara de comprar e que há muito procurava

- A Fugitiva de Marcel Proust, além de um uniforme

de ginástica, com camiseta e short novos em folha, também

récem adquiridos com etiquetas e tudo.

Passei por eles, que não me olharam diretamente, porque

conversavam com o trocador, que devia conhece-los, e

esperei o ônibus chegar no ponto final.



                   A fugitiva de Marcel Proust
                     na edição que eu procurava




                                                                                            

                                                                        Concertos para piano e
                                                                        orquestra de nºs de 1-5&7
                                                                        com Leonard Bernstein- solo

O cd fatídico de João Gilberto


o ônibus rapidamente parou em frente do ponto, que se encontrava

lotado de gente que voltava do trabalho, principalmente senhoras

carregando bolsas e embrulhos e meninas que deviam ser

domésticas diaristas cansadas e loucas para chegar em casa,

depois de limpar, cozinhar e aturar as frescuras das madames

e dos seus filhos mimados e insuportáveis.


Interior do ônibus


Desci as escadas pensando que, se alguém ali poderia ser assaltado,

era, infelizmente, alguma daquelas mulheres do ponto final,

dando sopa com as suas bolsas e trouxas de roupas, e sem nenhum

macho valentão presente para protegê-las desse safado mundo

cão. É necessário acrescentar que, aquela área, era em frente

à décima quarta delegacia de polícia, que poderia ser vigiada

de lá apenas com um lançar de olhos por qualquer policial,

de tão próxima que era.


Embora a dor de cabeça não me largasse nem um segundo,

depois daqueles, praticamente, quase cinco minutos que o

ônibus demorou para me trazer de onde me encontrava até

ali, parei na porta do ônibus, em frente à fila que aguardava

no ponto para entrar no ônibus, olhando todo mundo nos

olhos e atravessei para o outro lado da rua, observando às

minhas costas, cautelosamente, se alguém não me seguia,

num comportamento totalmente persecutório, isto é, de

quem se sente perseguido - mas, a rua estava vazia.

Do outro lado, um pouco mais adiante, tornei a olhar para

trás, tentando ver se alguém me seguira, o que verifiquei

que realmente não acontecera, pois para trás a calçada

estava deserta, iluminada apenas pelos esparsos postes de luz.



E foi só neste instante, que me acalmei e relaxei, passando a

ansiar apenas chegar em casa para tomar um analgésico e

me distrair de tudo vendo televisão, como eu merecia,

depois daquilo tudo.

Pensei nos telefonemas que havia de dar, quantas calorias

poderia digerir para não engordar e todas as coisas que

comumente penso antes de chegar em casa, já satisfeito de

que aquela ideia maluca não tinha se realizado, e pensei que

a minha carteira possuía ainda algum dinheiro, mais quarenta

dólares, que não precisei trocar para reais, e que fora o que

sobrara das compras que fizera.


Foi quando senti, algo subitamente, como uma mão dando

um tapa em minhas nádegas, me alisando a minha perna

direita, desde dos bolsos até as meias.

À princípio, achei que pudesse ser uma brincadeira sem

graça de algum amigo, ou mesmo o gesto desavergonhado

de algum tarado da noite. Parei e olhei assustado para

baixo e me surpreendi em flagrar uma mão audaciosa dentro

das minhas meias, as vistoriando, como se quisesse achar

algo que eu ali tivesse ocultado.

Então, senti uma pontada gélida e real no meu pescoço.





Foi quando ouvi uma voz baixa, sussurrando em meus ouvidos,

que se eu me mexesse eu morria, que ele ia me apagar, e que o

que eu tinha comigo não era mais meu, e sim dele, agora, e que

eu devia entregar tudo pra ele, se quisesse sair dali numa boa,

sem me arrepender de ter feito alguma bobagem e me dar mal.



Levantei meus olhos em direção a voz que em sussurrava

em meu ouvido e vi, paralisado, que era um daqueles

rapazes do ônibus que me seguira de algum modo a que

eu não percebesse, talvez pelo outro lado da rua, e ali

estava, me espetando a jugular do meu pescoço com um

finíssimo estoque, como uma agulha de tricô enorme de

aço, feita de um vergalhão de ferro, afiada como uma faca

e que brilhava sinistramente no escuro.




Seu rosto de pele escura, os olhos esgazeados e negros, o tufo

despenteado de cabelos ásperos e selvagens meio coberto pelo

capuz cinza de sua jaqueta de malha, eram iluminados pela luzes

de néon dos postes da rua, parecendo aumentar a expressão de

filme de terror. Formava em sua expressão, como uma máscara

do que se estereotipa o que seja um demônio, coroado por sua

bôca com dentes proeminentes e afastados no meio, um espaço

negro e vago entre os dois incisivos, como se ali, naquela cara,

como a de semblante de um vampiro horripilante que estivesse

pronto a morder e sugar a sua vítima, houvesse sido

materializada a anormalidade e o vazio furioso e disforme

de seu caráter.

Não ousei mexer um músculo sequer e entreguei tudo como

ele queria, pois sabia que a melhor forma de manter algum

controle sobre a situação era não reagindo, como toda

pessoa sensata faz, e evitando que ele exercesse sua

violência prestes a surgir, mantendo-se bloqueada por

estar sem razões para isso.

O seu capanga, um garotão branco vestido de calça lee e

camisa social listrada e desabotoada, mostrando o seu peito

adornado com um colar dourado com uma figa, pegou de

minha mão a sacola, que ainda pensei que pudesse recuperar

depois, pois o que quereria um ser como aqueles de uma fita

de Bach ou João Gilberto? Poderia ele ter alguma fruição do

livro de Proust? O uniforme de ginástica serviria para ele, que

claramente não vestia o mesmo manequim que eu, sendo

magérrimo e bem alto? Bom, talvez ele tentasse os vender mais

tarde para algum erudito mambembe, se é que isso existe.


Eu tremia todo, como se alguma descarga anômala e

arritmica se deslocasse por mim, como uma onda gélida

e horripilante provocada por imagens fantasmagóricas que

me assombrassem e não figuras reais em carne e osso,

materializadas naqueles dois marginais e infelizes criaturas

que exerciam ali seus crimes, diretamente em cima de mim.


Não podia também acreditar que eu tivera, intuíra, uma

premonição, um pensamento que denunciava um acontecimento

futuro e que este se materializara dramaticamente, magicamente,

para mim e que ainda não sabia qual seria e como seria o fim de

tal desventura medonha, pois o pensamento só me avisava do

acontecimento e não do desfecho.


Mas não durou muito tempo. Logo, ele pediu para que

eu vazasse dali devagar, sem olhar para trás nem naquele

instante, nem depois, e nem uma vez só, porque aí as coisas

iam ficar pretas para mim, ameaçou - o que, é claro, eu fiz

sem vacilar. Pensei que talvez pudessem me acertar pelas

costas, para garantia deles, mas não tinha nada a perder,

não poderia lutar contra dois caras armados e mal intencionados.

Caminhei calmo e lentamente para o meu prédio e não

acreditei quando atravessei a portaria, como se nada tivesse

acontecido e peguei o elevador para o oitavo andar, minha casa.



              O lugar exato do assalto na Av.Afrânio de Mello Franco


Quando cheguei lá, mal eu bati a porta, já me telefonavam da

Cruzada, conforme a voz se identificou, que achara meu

telefone em minha carteira e se prontificava a me entrega-la,

sem o dinheiro, claro, mas com todos os documentos, isto é,

se eu fosse lá, naquela hora da noite, buscar. O convenci, então,

de a entregar na portaria do meu prédio, pois o forçara a

acreditar que fôra agredido e que estava um pouco

machucado e que não conseguiria chega até lá - é lógico

que eu não me predispunha a ser assaltado novamente num

lugar tão suspeito e temível quanto dentro da Cruzada

aquela hora da noite. Ele afirmou que me entregaria, porque

havia ainda pessoas legais na Cruzada, e que ele era uma

delas, e assim foi. Depois de algum tempo o porteiro me

interfonou dizendo que alguém me procurava na portaria.



Eu desci com o meu pai, deixando prevenida a minha mãe e a

empregada e com o telefone da policia, pedindo à elas que

vigiassem da janela, para que se algo suspeito ou inesperado

acontecesse, ligassem para a policia imediatamente.

Na portaria, do lado de fora, me aguardava um jovem mulato

de aspecto humilde, circundado pelos porteiros e garagistas,

que já sabiam da história. Ele me cumprimentou e começou

um discurso que eu entendia que era, lógico, um pedido de

dinheiro em troca da carteira.



Mas, afinal, ele acabou me entregando a carteira sem problemas,

se justificando, dizendo que encontrara a carteira na rua, que

poderia ter pedido algum dinheiro para devolvê-la, como eu

pensei que ele já fizera. Eu retruquei que todo dinheiro se

havia ido com o assalto e por isso não poderia gratificá-lo,

pois sabia se tratar de um segundo golpe para me tirar mais

dinheiro, que eu já previra.

Contudo, não sei porque razão, não sei se a presença dos

porteiros com telefone na mão, e a presença do meu pai,

o impediu de algum ato violento, ou se, como ele falava,

era mesmo uma pessoa legal da Cruzada. Ele me

entregou a carteira, repetindo o mesmo discurso de estar

entre as pessoas legais do seu lugar e foi se embora.



O episódio terminava sua fase real, para entrar na fase de suas

consequências psiquícas e existenciais, porque então as perguntas,

questões de ordem transcendentais e afins, começaram a pipocar

em minha mente sem que eu pudesse controlar, pois realmente não

aceitava o acaso - que por acaso tive dor de cabeça, que por

acaso na hora exata da dor de cabeça viera aquele pensamento

obsessivo e que por acaso o pensamento se realizara quase

cinco minutos depois em outro bairro. O irreal se transformara

em real, entenda-se numa verdade e isso transtornava toda a

noção do que eu tinha do que é uma verdade. A ciência é o

estudo do real, mas como entender que esse real pudesse

ser previsível por intuição?


A intuição existe, a ciência, a psiquiatria, a psicanálise aceitam ,

mas não explicam muito exatamente como se dá. Como isso

realmente acontece? Existem teorias, mas nenhuma

comprovada ainda.

Intuição é uma palavra derivada do latim - o verbo intuire que

significa "olhar atentamente". Alguns psiquiatras, vindos de uma

origem yunguiana, acham que pode ser uma análise da

intermediação do inconsciente do lado esquerdo do

cérebro, racional e objetivo, com o do lado direito, sensitivo

e subjetivo. Daí a apropriação do verbo em latim que faz uma

espécie de tradução da sensação.


Mas, quanto à mim, não acho que eu olhei, ou melhor

"olhei atentamente" com o meu inconsciente algo que poderia

analisar de qualquer forma possível. Eu não tinha um

pensamento como " eu acho que" , mas uma idéia como

uma certeza absoluta!

Tudo muito estranho! Haveria algum modo de evitar o intuído,

ou eu estava marcado para que ele acontecesse comigo?

Adiantaria passar o tempo em alguma loja, folheando um

livro, ou visitar algum amigo, como cheguei a pensar no

ônibus, o qual por certo riria dos meus temores, ainda por

cima vindo de alguém de minha formação, para despistar

ou mesmo desfazer o que aconteceria?

Adiaria o desfecho fatal ? E se eu evitasse realmente, como

poderia saber que havia fundamento naqueles sintomas

absurdos?

Haveria alguma função para o metafísico que nos transcende

me avisar? Existiria o metafísico? Onde perceber o limite do

que é crível por ser uma verdade que existe de uma

subjetiva e de origem indiscernível?

De que adiantaria saber alguma coisa?


Pois, de nada adiantou a ciência do fato, pois não o

consegui evitar, porque talvez fosse mesmo inevitável

- eu seria assaltado mesmo que elocubrasse mil estratégias

para driblá-lo. Essas questões surgiam sem parar, também

de maneira compulsiva. E continuam até hoje! Já cheguei

até a cronometrar o tempo que o ônibus levou até chegar ao

ponto final, para compreender qual tempo exato que tive

antes que aquela intuíção, da única vez em que eu fui

assaltado, se realizasse.

Continuava não aceitando, descrente.

Seria um acaso mesmo?


Como entender o que se passa no cérebro, diante do

que se passou para mim?

Será que previ o futuro distante em quatro minutos antes

que acontecesse?

Seria um produto da velocidade do pensamento, ou das

ondas de energia que eram provocadas por descargas

elétricas como em todo eletroencefalograma constatamos,

que no caso seria mais rápida que a velocidade da luz,

a ponto de fazer ter um pensamento que só dali a cinco minutos

eu poderia ter tido, pensava eu, delirante? Ou só, apenas, um

simples fruto de um fortuito acaso. Para mim, é como o

surgimento de um desses acasos absurdos, que colaboram

para que pensemos que a vida jamais será entendida em

sua plenitude e que para sempre estaremos diante do mistério

insolúvel da estrutura miraculosa do sem fim.


Acho que nunca saberei a solução e sua última consequência

seja, finalmente, a de servir só para escrever este texto,

me exorcizando de vez de ser mais um daqueles em que

a metafísica trouxera a ponta de um fio a ser desenrolado,

para que saísse ileso de um labirinto em que vivia à espreita

o monstro da insanidade, o Minotauro do não saber, o caos

da razão, ou apenas um contato com outra dimensão.


PS:

Na época, não dei queixa à polícia, pois acreditei ser inútil.

Porém, anos depois, identifiquei o assaltante que me ameaçou

com o estoque e com os inesquecíveis dentes separados na

frente, quando me deparei com ele novamente, e também

senti algo parecido com o que havia sentido da outra vez.

Mas, frente à frente à ele, em outra situação pior do que

essa - no famoso sequestro do ônibus 174, que ocorreu

em frente quase da minha casa, aqui no Jardim Botânico.

Ele era o sequestrador conhecido como Sandro.

Soube que dormia, naquela época, na porta de um hospital

perto dali,o Miguel Couto, que nunca matara ninguém, sendo

uma vítima de uma vida terrível e altamente trágica, e que

assaltava pessoas no Leblon para poder sobreviver.

Mas isso já é uma outra história.


                                                                                               foto - O Globo
                                O tal Sandro no sequestro do ônibus 174






A poesia




ela pegou o seu livro de poesias, fez uma dedicatória

e deu pra mim

e eu disse que ia lhe responder por escrito

pra quê que eu fui falar isso se nem sou poeta?

pra mim poesia tá por aí

o quanto de poesia passa à vista!

para mim pode ser como passats
                                       fiats
                                       kombis
que rolam pelas avenidas, são os ônibus que trafegam até

os subúrbios, enquanto os pobres mastigam violência,

cospem fogo

ela me encontrou e disse: - você hein! nem um telefonema!

e eu disse: - te escrevo é melhor!

porque? pensava comigo mesmo, como pudesse dar conta

de alguma coisa

penso

penso

abro porta

fecho porta

tranco

abro um jornal

leio

me arrumo

me visto

e saio

abro porta

fecho porta

tranco

e a poesia?

deixo lá sobre o sofá, o seu livro de capa azul, azul

porque não escrevo?

porque a vergonha?

eu sou pretensioso talvez, ou talvez seja nada

tinha quase quarenta naquela época

já fiz de tudo e permaneço como um grão de areia

a lembrar da pedreira daonde eu vim




meu pai é cruz

minha mãe é dia

me criei na praia, não sou nada, sou ar

mas a praia agora é diferente daquela praia que tinha pescador e dois

garotos que iam nas ilhas Cagarras, logo ali em frente, mas muito

quilômetros mar adentro, remando numa frágil canoa de madeira

e voltavam com cocos, com conchas, estômago e músculos

estourando, vibrantes, felizes a se esculpirem em bronze e 

mostrando tudo que haviam trazido de lá de longe, das ilhas

ondulantes que víamos como parte de um cenário de nossos

mergulhos diários, até o dia que a noite chegou e nada de conchas

ou cocos

                                                                                                               foto de Marc Ferrez



foi uma noite triste

foi mesmo, mesmo para quem não entendeu as

luzes na areia que sinalizavam pelo negrume da praia à procura

de alguma resposta ao longe

e de nada adianta lembrar-se , foi-se

silêncio no horizonte

neste momento, a areia está quente, o sol no meu rosto,

todo o céu azul, azul

um pivete luta na praia com um rapaz, logo vem a sua turma

e a do outro também

as cadeiras voam

também as barracas

os sanduiches e as cervejas

a gritaria

tudo vai pelos ares

eu estou bem longe a imaginar quando virá a onda

o macaréu

o maremoto que vai afogar a cor

vai quebrar as vidraças

arrancar as pedras portuguesas das calçadas

e deixa-las pra lá do pantanal e da minha passividade

será a onda espumante, negra, conquistadora que irá transformar

a mata atlântica e arrancar os espinhos da minha carne

absolvição

poesia





e me deixo levar nessa correnteza sem ver que, em algum lugar

do mundo


um negro atravessa a Quinta Avenida e conserta, sobre o seu

nariz, o óculos brilhante e verde


uma mão lanhada retira um peixe arfante, amarelo e oleoso do

rio Javari


um ator enforca a atriz numa cena percebendo o quanto

ele a amará na cena seguinte


abre-se um olho irrigado de vermelho e pinga-se quatro gotas

de Lacril até que a irritação desapareça


um pastor prega que de embriaguez e de dor te encherás

do calix de tua irmã Samaria


um quadrúpede empaca diante do ônibus cheio de gente

e zunzum dos insetos


um tapete mágico sobrevoa as torres das refinarias

incendiadas por foguetes terra terra


uma mulher, como uma santa, se veste de palhaço e atua nos

hospitais, para fazer graça para crianças enfermas e salva-las

da tristeza, ajudando a cura-las, por amor e por alegria e depois

escala o Kilimanjaro para poder entender o que é o desafio

de sentir o céu fora de si 


um artista cria um mundo no papel, sabendo que nada é

impossível, mas que tem a sua hora de existir e para

refletindo e enxergando um mundo que chegará algum dia


um mulato de morro penetra a sua nega mordendo seus braços

de deusa Shiva


uma mulata sacode os peitos, encobreia, aperta e quase engole

todo o seu Ulisses


alguém coloca  gasolina no seu tanque, sem sentir que os vapores

do combustível são um perigo terrível e ameaça a explodir tudo

pois alguém fuma ali por perto


duas drosophilas se acasalam numa retorta transparente acoplada

a um contador Geiger à 0 graus centígrados


a íris azul, azul de Brad Pitt espelha os refletores, iluminando

um abismo sobre o Colorado


o corpo de uma mulher de meia idade é encontrado semidespido

desfigurado, cheio de moscas, enquanto o investigador desconfia

do seu marido de pouca idade


em algum lugar do mundo existem Das Dores, Franks, Brendas

Severinos, Freds, Lulas, Marias,Maries, Marys, Marischens

Maricotas, Dortemunds, Elinaldos e Socorros que  nascem

crescem, se acasalam, procriam e morrem como gado


em algum lugar do mundo

tudo que possa acontecer é apenas

um movimento descartado, que passa por meus olhos e deixo

escapar, porque não faz parte dessa longa cerimonia elétrica

que são os meus sentidos, a minha percepção descuidada

porque penso nessa bobagem que é a onda exterminadora

deusa dos surfistas, e prefiro me voltar aos pensamentos

da minha juventude, diante da impossibilidade de resolver o

assunto poesia


Deus deixa rastros na areia como as vírgulas nas poesias 

reticentes

espaçadas

silenciosas

e eu preciso ouvir uma voz só

mas que me complete em pura criação

em azul, azul

absurda

poesia








domingo, 25 de abril de 2010

Ponto de interrogação






vida
de quem 
és vasta  porta
para esse triste
mundo vão

à
mim
só existes

e

basta!

és
como
ponto de
interrogação




se
me
apela a
tristeza
como choro
de criança
soa


se
me
traz a
alegria
és como 
fonte de
água
boa


sendo
assim

sou
 o que me
trazes

e
de mim
levas

mais que
 desvarios fugazes 

saio
do espaço
em trevas
na luz
que tudo
me ensina 

e
é
tão
claro
e simples
pois
apenas sigo
passo à passo
só imaginando 
e imaginando 

como
mesmo tu
sempre
fazes






Azul,azul,azul




Pobre escada azul

me ergueste até o céu

e me guardaste

em tua névoa de astros

e numa escura noite

a tua ausência

me deixaste

como presença errônea


Triste porta azul

já que

nunca

esperava

que ali

contida a se debater

tanta delicadeza

frágil ira

e uma infância em abandono

densa penumbra

trancava a certa ida



                                                                                                       foto de Parke Harrison


Enganosa sombra azul

pensei que iluminavas

o desregro do meu andar

negro minuto

infinito

meu corpo

palavras

imagem a desenhar


Impossível amor azul

dormiste inconstante e dali

talvez não acordes mais

para mim o céu

em que eu um dia vi

belo e eterno

cérebro e celeste

em seu piscar

um anjo

ou mosca azul

sobre um cais



a minha existência é finda

é mudo desastre

não mais acordar

ah dor

como sofro!

inútil 

o

te amo demais


porque além do azul

encontrastes novos tons

novo matiz

nova cor

e deixastes de flutuar

não transcendes

e não tinges mais o céu

ou o mar



sábado, 24 de abril de 2010

Arapuca

                                                                                                              grafite de rua


não há mais telas mais

não há mais grupos mais

não há mais rimas mais

não há mais temas mais

não há mais eterno mais

não há mais experiências mais

não há mais utopias mais

mais, mais e mais


a menina anda de patinete

o açougue fecha as portas

os moleques na internet

nos cinemas os mesmos refrigerantes
                
                                    as  mesmas pipocas

                                        as  mesmas tortas



eu não te olho mas te quero

eu não te vejo mas existes

eu não te enxergo mas pondero

eu não contemplo resumistes


apenas sou em mim

apenas sou eu só em mim

apenas eu sou só por mim

apenas eu me deixo em mim

eu e o só pra mim

o rápido é assim


o outro é chato

o outro é cilada

o outro é falso

o outro não me entende

o outro não compreendo

o outro, pra quê?

o outro não está afim

o outro tá lá na China

e a China não é só Pequim


mas se o outro também é gozo

esse gozo está também em mim

onde está a chave dessa arapuca

como resolvo essa porcaria

e  pra onde vou no fim?

                                                                                                 grafite de rua





sexta-feira, 23 de abril de 2010

Os leões se movem



pata atrás de pata
o silencioso movimento dos leões
omoplatas
sobem
e descem
sobre um capinzal
a crescer

apontam o branco céu
o claro teto
do meu quarto
que vejo por cima
de meu lençol

copulam feras no quintal
mas nem um quinto
do que os meus olhos vêem
captam todo o real
existe uma selva atrás das paredes
sob os tijolos
dessa casa comum



A caneta arranha o papel
unhas doces
fluxo trepidante e cru
mas azul
a poesia é o meu jardim
zoológico
onde eu prendo
enjaulo
os meus sentimentos perigosos
porque não sei como os domesticar

Escuto urros no arrebol
ou um balido de um elefante
a selva apavora minhas letras
doma o corpo a plenitude
do esbarrar nas folhas




amar
é encontrar os limites
de uma jaula invisível
e abrir sua porta
transpô-las, encontrar a natureza, ar puro
um sopro que vai e vem
como um bicho preso
que arranca da carne suspiros
só o impossível
o imaginário
mas sacia-se
lanha
se alimenta

pronto
portas abertas
e as goelas se abrem
bicho solto
devorar sem fim

luta e fome

mas eis que tenho
uma cadeira
um chicote
e a coragem
e a chibata estala no ar
a platéia urra
aplaude
e abro as portas da jaula
o instinto salta



poesia é o meu bestiário
de portões abertos
dali
fogem todos os animais
que só voltam
quando os esqueço meus

dos outros
lembro o cheiro
almíscar
suor
e rugidos
som dos cascos
os silvos
e o que lambe o sangue das avenidas
o rebanho de faróis acesos
o Serengeti moderno

e um símio tímido

um homem de jaulas vazias
eu




enquanto ando
farejo
imito a procura dos leões
quero encontrar a presa
animalidade
ser selvagem
feroz
o alimento
a besta enjaulada
o sentimento
em minha alma transparente

só assim saberei
o que me resta de homem
ou de animal
ou de espírito
só assim conhecerei
o que fica dentro de mim
o leão que delimita o anjo
o santo

eu
só amor
eu
a besta
por isso caminho
e não quero falar
a caçada continua
vivo
amo
rujo



terça-feira, 6 de abril de 2010

Meu encontro com o Godzilla




E se eu fosse assim como uma sobremesa de um monstro venusiano?

Eu, esse ser à toa, chinfrim, espantalho lunático, ainda me complico

 mais - como posso pensar em tais seres absurdos em minha cabeça

a me devorar ?

Eu  me defendo escrevendo compulsivamente qualquer loucura

e penso: - o insano me comove ou será que me faz que me ache, que

eu me descubra?

De que me serve escrever essas coisas?

 E a lapiseira corre e continuo a divagar, a lapiseira a correr, girando

os dedos no ar e a apontar para o papel, apontando algo que não vejo

e com o qual me desaponto.


Atravesso as ruas e continuo em minhas divagações mesmo com os

sinais abertos e carros buzinando.

Continuo a pensar em animais gigantes e ameaçadores, bilhetes

lacrados, na última sessão de cinema, nas minhas memórias

malucas, nos megabytes, no correio, nas limonadas, nos flertes na

madrugada, em dinheiro e amores fugidios, no que não existe, no que

não vem e aí,pronto, danou-se, a cabeça passa a doer, explode.


É claro que quando se mexe com verdades, e se estas são

contundentes, é como se abrisse a sessão de uma tortura sem

nenhum ganho prazeroso, pois são reais, machucam de verdade,

e nada posso fazer para apaga-las.

Então, funcionam como um filme de quinta .


Mas é o real, não uma ficção com  monstros lunares, marcianos,

ou sejam puros delírios masoquistas.


Mas as verdades não seriam também monstros cósmicos?


Se o planeta Vênus é o planeta do amor e a dor de amor é uma

verdade real, então esta não pode ser um ser venusiano ou um

monstro vindo de Vênus a me devorar e a todo o meu coração,

meus pensamentos, minha sanidade, como um legítimo banquete

venusiano? Ou seria, vindo do planeta em questão, mais válido

um ataque de uma nuvem de cupidos assassinos, disparando

flechas apaixonantes por todos os lados, disseminando uma

praga de paixões virulentas entre todas as pessoas, não

respeitando laços familiares ou questões éticas básicas

como entre pessoas no trabalho, médicos e enfermos nos

hospitais, comandantes e soldados nos quartéis, presidentes

e faxineiras, professoras e vendedores de pipocas e de

goiabada dos recreios, pastores evangélicos e mafiosos,padres

e pecadores infantis, idosos dos asilos e garbosos salvavidas

atléticos ou bombeiros despojados. Já se imaginou a onda de

crimes por ciúme ou inveja, o descalabro que se desencadearia

se tal coisa acontecesse por aqui? Seria o fim do mundo! O fim

por intermédio do amor e de Vênus, transformando toda terra

num bacanal psicótico, numa orgia destrutiva e insalubre. Teria

que provavelmente intervir com meus superpoderes através da

internet, das tvs e rádios, fazer discursos em praças públicas aos

despudorados e salvar um sem número de apaixonados, voando

entre as turbas enlouquecidas e despidas, loucas por só mais

um beijinho!

Acho que estou perdendo em não ser um herói intergaláctico e ter

a minha própria pistola de raios de abater paixões temíveis, aquelas

que surgem babando e pedindo meu coração para estraçalha-lo

por fome de amor .

Acho que tenho que ver mais filmes de guerra nas estrelas e saber

de toda as técnicas, os abrigos de sobrevivência intergaláctica, o

manuseamento de lança raios antimonstros e anticupidos e mais

toda parafernália, em caso de ataque de bicharocos meio grudentos

ou se o Jurassic Park se expandir de Hollywood até aqui.

Que perigo!


E isso pode acontecer! É só comprar o bilhete para uma sessão

de um filme que não agrade ao seu amor e o que estava

adormecido lá dentro se rompe. A imagem familiar bonitinha

que você estava acostumado desaparece e se transforma num

relâmpago, surgindo então:

- tchantchantchantchan... um tiranossaurus rex se movendo para

cinemas lotados e destruindo tudo ao redor, varrendo com a sua

cauda casais de namorados das poltronas, voando pelo ambiente

apagado e dilacerando com as lâminas afiadas dos seus dentes os

decotes, que gotejam saliva e sangue, os espectadores em pânico

que tropeçam atabalhoadamente, uns por cima dos outros, no

desespero de fugir do encontro maligno, tudo isso entre chuvas

de pipocas e copos de cocacola, assobios, gritos histéricos e

mulheres berrando : - eu não disse que filme esse não prestava!


Vai se dormir com isto na cabeça! Não dá para dormir com

um tiranossaurus fazendo café na cozinha e dizendo: - vai dormir,

meu bem! Eu te janto depois!


Todo possível amor é um possível Godzilla ou um bichinho pelúcia!

Cai nessa!

Eu sou mesmo um ser chinfrim, à toa, um palhaço lunático.

Que nada! tudo besteira!

Eu sou assim!

sábado, 3 de abril de 2010

Hoje foi a gota d'água

                                                                           

                                                                                                              foto de Boyd Webb

Basta hoje foi a gota d'água.
 A coisa pinga, pinga, pinga até que faz uma poça d'água que se torna maior, e maior, e vai, vai, continuando a pingar, e a pingar, aí não era mais uma poça e sim uma inundação com ondas que se arrebentam entre os guardaroupas, as poltronas, carregam as mesinhas e a cama que fica toda encharcada, até que sejam necessários um bote salvavidas para dar conta de tal despautério, por causa daquele pequenino pingo d'agua, que acaba com a paciência de qualquer um e mais parece com uma tortura para lhe arrancar uma verdade no fim  - a que não sei dar conta do que me cabe nesta vida!

E, desde que o final não é feliz, não porque eu quizesse assim, a me desabar todas essas mágoas, concluo que foi a bendita sorte. E é a sábia intuição que me fala que foi a maquiavélica senhora que me trouxe esses pingos derradeiros e que me abriu esta chaga sem dó nem piedade. Aliás, o que lhe é peculiar em seu rastro, pois não devemos entender que tudo que essa pessoa faça na vida dos outros fosse apenas trazer uma taça de bom vinho para se brindar numa festa de aniversário onde todos fazem a comemoração de seus anos ao mesmo tempo, no mesmo dia e na mesma hora. Porém, é lógico que há de se louvar o sem número de habitantes deste planeta que vivem sem nenhum temor de ficar sem casa para morar, ou uma cama para dormir que não chova em cima, ou mesmo um pedaço de pão ridículo e mofado que lhe forre o estômago em abandono, em contrações, e sem sorrisos como uma casa de penhores de uma firma sem escrúpulos pronta a lhe tomar esse mesmo pão verde como pagamento de uma dívida que não vai se sanar, nem que ele ganhe na loteria dos afortunados das mãos cheias e dos sorrisos fáceis.
Mas, também há de se contar o parceiro misterioso dessa senhora chamada sorte - o destino, que forma com ela um casal  pleno de intenções dúvidosas e segredos que nunca conseguimos desvendar, nem que fossemos sherloques natos, e que, às vezes, servem como anjos lindos e dadivosos, ou, de vez em quando, acho que agindo meio por um tipo de patologia bipolar, como demônio e executor da mesma pessoa em questão, exatamente quando ela pensa que não tem que se preocupar com mais nada em sua vida e que dali em diante os dias serão claros e brilhantes e que em cada esquina encontrará um trevo de quatro folhas vicejando em seu caminho, lhe pedindo para os levar consigo, porque ela era agora a eleita dos deuses e que estes lhe encheriam os cofres de ouro, encontraria a fama e logo o amor de sua vida, e nunca esbanjaria tanta saúde para aproveitar todas as bençãos que, sem dúvida alguma, lhe recairiam sobre a sua  afortunada cabeça direto dos céus para transformar a sua vida num paraíso lendário sobre a terra. Mas a sorte e o destino não descansam nunca em sua criatividade de gênios dos resultados infactíveis. Traçam mil passagens e caminhos tortuosos e intrincados, que os indianos chamam sabiamente de karma, impossíveis de se prever ou mesmo de até de entender como alguém pode assim os tramar, tal a inventividade exigida como einsteins das tramas absurdas que nunca poderiam dar certo, mas que se fazem acontecer e funcionam, embora possamos achar no momento que deu errado, para depois nos abismar com os resultados próximos ao milagre divino. Mas que, no entanto, agora, deram para agir contra tudo que eu faça. E tudo que se faz, eles vem e desfazem com um sorriso no rosto, achando que eu sou tolo e nada vou aprender para que eu possa deles me aproveitar, ou mesmo deles me defender. Mas há de se louvar a criatividade, a sutileza que se percebe em cada nuance de suas maquinações sutis e tramóias virtuosas em que constróem a cada passo de suas artimanhas, planejadas milimetricamente em tempo, espaço e teor, como nem um diretor de hollywood poderia orquestrar na mais genial de suas criações, os caminhos mais intrincados, os becos sem saída que temos de driblar para que o filme de nossas vidas continue a passar.
                                                  
                                                                                                                    foto de Martin


No entanto, não importa mais para mim as voltas que traçam e seria louco se isso importasse para mim, pois o que me fala agora, de como ficar bem, é o esquecimento de tudo, com olhos bem fechados e para fora do que foi  toda essas invenções sem controle ou não, onde só me lembre da fuligem que embaça a minha janela e de uma onda quebrando rasa. Porém, não é um dormir propriamente, pois que não é a fuga ideal para evitar qualquer desgraça, mas sim um voltar à origem com tudo o que me possa me trazer de bom, que me conforta e drena tudo que me alaga, e que leva folhas amarelas até aquele caminho de quem passa sem ainda notar tantas folhas caídas pelo chão, não percebendo que são as próprias folhas que se deixaram cair ali de propósito, transformando toda chaga e desconforto, de quem ali passa, na perfeição do que vem, no exato momento em que as nota, desviando a atenção de si próprios e de sua miséria para beleza quieta do tapete dourado construido por seres que se vão e que deixam ali a sua mensagem humilde e generosa de que, nem por isso tudo que passaram até o fim, deixam de ser belos e gratos à tudo que lhes ocorreu, graças ao destino e sua sorte.  E, enquanto quem passa olha agora, distraído e maravilhado, para elas, também não percebe que são, na verdade, a justa causa de se chegar em segurança dessa longa viagem e sem nenhuma ferida mais ou cicatrizes, recuperado em sua vida como se nada tivesse acontecido. E entende-se um sentido fortuito à tudo que aconteceu e que sem todos os acidentes não haveria beleza a deixar por ali, em nosso rastro.
E absorto e meditativo, então, elas me levaram para os sonhos do sem fim, minha origem, completamente alheio ao que se passava comigo, agora percebendo que a inudação passara, e que tudo estava como antes seco e em seu lugar. Foi quando entendi tudo e agradeci ao destino e à sorte por tudo que haviam me causado, por todo meu karma, que ter desventuras é a matéria da criação, mas que talvez estas não o sejam afinal, depois que o percurso acaba, e sim bençãos, ao notarmos tudo no fim da jornada, que o que ganhamos não tem preço, mesmo tendo que pular cada pedra da estrada.








Apocalipse

                                                                                                                                  A Jangada da Medusa- Géricault



Estou aqui nessa jangada cheia de naufrágos, porque tudo que

conheço afundou, aliás, porque sou sobrevivente do apocalipse.

E todo mundo me pergunta :

 - Que apocalipse?

Eu digo:

- Do apocalipse que passamos ainda ontem, não se lembra?

Nós estávamos na casa de um amigo, que eu não via há

muito tempo, e tudo começou a desmoronar, a ruir.

As águas do mar, até então pacíficas e sujas, se revoltaram não sei

com quê, e se tornaram limpas e transparentes, mas rebeldes e tão

violentas que passaram por cima de Ipanema e do Leblon,

 limparam toda a Lagoa e foram bater aos pés do Cristo que nada

fez, continuando a olhar para o espaço, como se nada existisse,

e o mundo não soçobrasse em pandarecos, talvez para dizer mais

tarde :

- Eu não disse!

E foi o tempo de reunir minhas coisas e meus amigos e minha mãe

e colocar todo mundo nesta jangada feita de uma cama de casal

abandonada e pneus de caminhão, amarrar tudo com cordas

feitas de cortinas rasgadas e rezar a Deus perguntando o porque,

porque, porque tudo em pandarecos, se agora parecia que o

mundo ia acalmar, se agora que tudo parecia ter se recobrado

do seus momentos mais violentos; e que o mundo não pensava

tanto em guerras assim e esse amigo voltou com a sua ex, e eu

não voltei com ninguém, porque assim o destino queria; e a crise

econômica se debelava, o mundo se mobilizava contra a poluição

e os abusos contra os direitos humanos e a Internet.....sim, pode

ser, a Internet, talvez a Internet seja a agora causa desse transtorno

todo, com aqueles sites abusivos, aqueles mentiras que se despejam

se fazendo de verdades, ou aquela falta de tempo para o mundo real

e tudo tendo menos importância que poderia ter; se nunca houvesse

essa ansiedade de teclar para alguém que você nunca viu na vida e

lhe confessar coisas que nunca diria para o seu amigo mais íntimo, 

porque saberia que aquela seria a última vez na vida que aquela

pessoa ia lhe ver ou falar, porque vocês não representavam nada

um para o outro, como ninguém representava assim tanto para

qualquer um, porque se perdia como um eco reverberando entre

a montanha e o mais além do infinito e assim por diante!

Essas montanhas que agora desmoronam, como os sonhos

mais altos que qualquer pode ter e não criam uma base com

fundamentos para que esses sonhos cresçam e fiquem azuis e

brilhem para sempre e se multiplique com os votos mais

fervorosos de sucesso de todo mundo.

E agora estamos nós todos aqui, nesta jangada, à espera que alguém

nos reconheça ao longe e venha nos salvar dessas ondas, dessas

ondas vingativas contra os pensamentos do homem, sempre contra

os pensamentos terríveis de alguém, e nos cerca com esse mar fundo

e negro, cheios de peixes famintos, assim como vivíamos cercados

de ganâncias, mesquinharias, bens cada vez mais sofisticados, mais

acessíveis, mas que se quebravam como um cristal delicado e frágil

à menor respiração, ou folêgo descentrado, ou jeito estabanado.

E não adianta virem de novo em perguntar que apocalipse, porque

vou ter que responder de novo, e de novo, que sim somos naufrágos

de um apocalipse, e eu mais ainda, porque não verei você

ao acordar, e não ver você de novo é como se o mundo

tivesse tido um apocalipse e eu desse sonho medonho nunca

mais pudesse acordar. E só você pode me salvar dessa loucura,

porque não sei mais como tirar essa sensação de que o mundo

se foi, de que o mundo não é mais seguro, que todos se afogam

nesse fim de mundo e de que o mundo não é mais sua voz, nem

quando dizia bobagens, porque você não diz sandices, não diz

nada que não seja pertinente, nada que se jogue fora, porque

você dá sentido à tudo e ao mundo. Já eu, não saberei

mais como é chegar em terra firme e dizer - voltei por você!



                                                                                 2012 O fim do mundo - o filme






quinta-feira, 1 de abril de 2010

sopro de sabedoria




Às
 vezes
a sorte ou o santo
ajudam o que não é praxe
porque há coisas que não se explicam
e a vida não é um sonho perfeito
até que um sentido
seja aceito
ou
eu
 um ache