Eu sou o Marcos Vasconcellos. Aqui eu escrevo o que me der na telha, o que me vem na hora de dormir, quando estou num onibus, ou no meio de um papo chato!
quarta-feira, 28 de abril de 2010
A poesia
ela pegou o seu livro de poesias, fez uma dedicatória
e deu pra mim
e eu disse que ia lhe responder por escrito
pra quê que eu fui falar isso se nem sou poeta?
pra mim poesia tá por aí
o quanto de poesia passa à vista!
para mim pode ser como passats
fiats
kombis
que rolam pelas avenidas, são os ônibus que trafegam até
os subúrbios, enquanto os pobres mastigam violência,
cospem fogo
ela me encontrou e disse: - você hein! nem um telefonema!
e eu disse: - te escrevo é melhor!
porque? pensava comigo mesmo, como pudesse dar conta
de alguma coisa
penso
penso
abro porta
fecho porta
tranco
abro um jornal
leio
me arrumo
me visto
e saio
abro porta
fecho porta
tranco
e a poesia?
deixo lá sobre o sofá, o seu livro de capa azul, azul
porque não escrevo?
porque a vergonha?
eu sou pretensioso talvez, ou talvez seja nada
tinha quase quarenta naquela época
já fiz de tudo e permaneço como um grão de areia
a lembrar da pedreira daonde eu vim
meu pai é cruz
minha mãe é dia
me criei na praia, não sou nada, sou ar
mas a praia agora é diferente daquela praia que tinha pescador e dois
garotos que iam nas ilhas Cagarras, logo ali em frente, mas muito
quilômetros mar adentro, remando numa frágil canoa de madeira
e voltavam com cocos, com conchas, estômago e músculos
estourando, vibrantes, felizes a se esculpirem em bronze e
mostrando tudo que haviam trazido de lá de longe, das ilhas
ondulantes que víamos como parte de um cenário de nossos
mergulhos diários, até o dia que a noite chegou e nada de conchas
ou cocos
foto de Marc Ferrez
foi uma noite triste
foi mesmo, mesmo para quem não entendeu as
luzes na areia que sinalizavam pelo negrume da praia à procura
de alguma resposta ao longe
e de nada adianta lembrar-se , foi-se
silêncio no horizonte
neste momento, a areia está quente, o sol no meu rosto,
todo o céu azul, azul
um pivete luta na praia com um rapaz, logo vem a sua turma
e a do outro também
as cadeiras voam
também as barracas
os sanduiches e as cervejas
a gritaria
tudo vai pelos ares
eu estou bem longe a imaginar quando virá a onda
o macaréu
o maremoto que vai afogar a cor
vai quebrar as vidraças
arrancar as pedras portuguesas das calçadas
e deixa-las pra lá do pantanal e da minha passividade
será a onda espumante, negra, conquistadora que irá transformar
a mata atlântica e arrancar os espinhos da minha carne
absolvição
poesia
e me deixo levar nessa correnteza sem ver que, em algum lugar
do mundo
um negro atravessa a Quinta Avenida e conserta, sobre o seu
nariz, o óculos brilhante e verde
uma mão lanhada retira um peixe arfante, amarelo e oleoso do
rio Javari
um ator enforca a atriz numa cena percebendo o quanto
ele a amará na cena seguinte
abre-se um olho irrigado de vermelho e pinga-se quatro gotas
de Lacril até que a irritação desapareça
um pastor prega que de embriaguez e de dor te encherás
do calix de tua irmã Samaria
um quadrúpede empaca diante do ônibus cheio de gente
e zunzum dos insetos
um tapete mágico sobrevoa as torres das refinarias
incendiadas por foguetes terra terra
uma mulher, como uma santa, se veste de palhaço e atua nos
hospitais, para fazer graça para crianças enfermas e salva-las
da tristeza, ajudando a cura-las, por amor e por alegria e depois
escala o Kilimanjaro para poder entender o que é o desafio
de sentir o céu fora de si
um artista cria um mundo no papel, sabendo que nada é
impossível, mas que tem a sua hora de existir e para
refletindo e enxergando um mundo que chegará algum dia
um mulato de morro penetra a sua nega mordendo seus braços
de deusa Shiva
uma mulata sacode os peitos, encobreia, aperta e quase engole
todo o seu Ulisses
alguém coloca gasolina no seu tanque, sem sentir que os vapores
do combustível são um perigo terrível e ameaça a explodir tudo
pois alguém fuma ali por perto
duas drosophilas se acasalam numa retorta transparente acoplada
a um contador Geiger à 0 graus centígrados
a íris azul, azul de Brad Pitt espelha os refletores, iluminando
um abismo sobre o Colorado
o corpo de uma mulher de meia idade é encontrado semidespido
desfigurado, cheio de moscas, enquanto o investigador desconfia
do seu marido de pouca idade
em algum lugar do mundo existem Das Dores, Franks, Brendas
Severinos, Freds, Lulas, Marias,Maries, Marys, Marischens
Maricotas, Dortemunds, Elinaldos e Socorros que nascem
crescem, se acasalam, procriam e morrem como gado
em algum lugar do mundo
tudo que possa acontecer é apenas
um movimento descartado, que passa por meus olhos e deixo
escapar, porque não faz parte dessa longa cerimonia elétrica
que são os meus sentidos, a minha percepção descuidada
porque penso nessa bobagem que é a onda exterminadora
deusa dos surfistas, e prefiro me voltar aos pensamentos
da minha juventude, diante da impossibilidade de resolver o
assunto poesia
Deus deixa rastros na areia como as vírgulas nas poesias
reticentes
espaçadas
silenciosas
e eu preciso ouvir uma voz só
mas que me complete em pura criação
em azul, azul
absurda
poesia
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