Querida artista,
sei que você espera uma crítica de mim.
Porém, mesmo que douto fosse em todas as leis da
boa escrita, ou tivesse eu, por uma virtude oculta, a fortuna
do segredo do funcionamento da máquina das invenções,
que opera os sonhos dos homens na terra e deixa
escapar a poesia de tudo que é comum e por isso invisível
à nossa percepção, ou de tudo que por sua magnitude
aterroriza com sua beleza e por isso invoca o sublime, assim
mesmo, não poderia ter uma suspeita sequer sobre a qualidade
do que escreve. Pois, se vejo ali a procura de limites,
das tramas e das redes, da urgência de delimitar até onde se possa
suportar a tensão da superfície entre a alma e a vida , percebo vazar,
entre os fios e nós, o sentimento, o profundo.
E quem sou eu para julgar sentimentos?
O abismo que foi outrora piso, solo, ou ora firmamento de
ínfimas percepções, é a fronteira, a película que entremeia a dor
e o prazer, o sagrado, ou a ciência de um magistrado altivo
que conhece o Eliseu e percebe os infames corcéis de fogo
que galopam desde o Hades com seus desvios atrozes
até aqui , ou o Éden - razão de nossos disparates nesse
palco de todos os dias. E como posso eu julgar corre
risco de se tornar um Frankestein ou um aborto, como se
de um lodo venenoso e artificial esperássemos que brotasse
o lírio de nossas satisfações.
Matisse dizia que todo artista devia cortar a língua, mas não dizia
que devesse cortar as mãos também e por motivos óbvios: ele
mesmo escrevia o tempo inteiro! Ele fazia diários compulsivamente!
E para isso servem os diários - há sempre a esperança da outra
página, da outra palavra que encontra outra, quase que
amorosamente, e transpassa músculo, nervos , sangue,
até o coração da perfeição.
Ali se vislumbra o prazer de encontrar alguém que não nos possa
trair, que nos admire, que nos ame incondicionalmente
- nós mesmos.
Um dia , confissões, outro relatos rotineiros, mas que como bisturis
que somos de nós mesmos, tudo para extrair o diamante de um
dia futuro, ou seja, o mesmo que acontece na arte. Reconhecemos
ali a intensidade de imersão em nossa personalidade ou a amplidão
de nossas ações.
Afinal, o infinito nos circunscreve por fora e por dentro,
não é !
dedicado à Daisy Xavier
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