quarta-feira, 10 de março de 2010

Carta à uma artista




Querida artista,

sei que você espera uma crítica de mim.

Porém, mesmo que douto fosse em todas as leis da

boa escrita, ou tivesse eu, por uma virtude oculta, a fortuna

do segredo do funcionamento da máquina das invenções,

que opera os sonhos dos homens na terra e deixa

escapar a poesia de tudo que é comum e por isso invisível

à nossa percepção, ou de tudo que por sua magnitude

aterroriza com sua beleza e por isso invoca o sublime, assim

mesmo, não poderia ter uma suspeita sequer sobre a qualidade

do que escreve. Pois, se vejo ali a procura de limites,

das tramas e das redes, da urgência de delimitar até onde se possa

suportar a tensão da superfície entre a alma e a vida , percebo vazar,

entre os fios e nós, o sentimento, o profundo.

E quem sou eu para julgar sentimentos?

O abismo que foi outrora piso, solo, ou ora firmamento de

ínfimas percepções, é a fronteira, a película que entremeia a dor

e o prazer, o sagrado, ou a ciência de um magistrado altivo

que conhece o Eliseu e percebe os infames corcéis de fogo

que galopam desde o Hades com seus desvios atrozes

até aqui , ou o Éden - razão de nossos disparates nesse

palco de todos os dias. E como posso eu julgar corre

 risco de se tornar um Frankestein ou um aborto, como se

de um lodo venenoso e artificial esperássemos que brotasse

o lírio de nossas satisfações.



Matisse dizia que todo artista devia cortar a língua, mas não dizia

que devesse cortar as mãos também e por motivos óbvios: ele

mesmo escrevia o tempo inteiro! Ele fazia diários compulsivamente!

E para isso servem os diários - há sempre a esperança da outra

página, da outra palavra que encontra outra, quase que

amorosamente, e transpassa músculo, nervos , sangue,

até o coração da perfeição.

Ali se vislumbra o prazer de encontrar alguém que não nos possa

trair, que nos admire, que nos ame incondicionalmente

- nós mesmos.

Um dia , confissões, outro relatos rotineiros, mas que como bisturis

que somos de nós mesmos, tudo para extrair o diamante de um

dia futuro, ou seja, o mesmo que acontece na arte. Reconhecemos

ali a intensidade de imersão em nossa personalidade ou a amplidão

de nossas ações.

 Afinal, o infinito nos circunscreve por fora e por dentro,

não é !


dedicado à Daisy Xavier

Nenhum comentário:

Postar um comentário