Ela me deu seu livro de poesias e eu disse que eu tinha de lhe responder por escrito, mas com poesias. E ela disse que sim, que estava esperando. Pra quê que eu falei isso, se não era poeta? O quanto de poesia à vista para mim são como os fiats que rolam pelas avenidas, são onibus que trafegam, enquanto os pobres mastigam violência e cospem fogo? Ela me encontrou de novo e disse: - nem um telefonema! E eu disse: - tá bem, eu te escrevo é melhor. Porquê? Abro um jornal, leio, depois o dobro, tiro a roupa, tomo banho, me visto, me arrumo e saio. Abro a porta. Fecho a porta e passo a tranca. Deixo lá o seu livro azul, azul. Porque não escrever? Porque ter vergonha? Eu sou pretencioso e, ao mesmo tempo, também sou nada. Tenho quase quarenta. Já fiz de tudo e permaneço como um grão de areia a lembrar da pedreira de onde vim - meu pai é cruz, minha mãe é dia, me criei na praia, sou como este ar, mas, talvez, com areia, água, sal. Porém, a praia é agora diferente daquela praia que tinha pescador pescando arraias-manteiga e peixes voadores com asas cor de arco-íris, que devolviam ao mar por não serem comestíveis, e dois caras que iam às ilhas Cagarras e voltavam cheio de cocos, de conchas lindas e os músculos estourando - eles iam remando numa canoa colorida de azul e vermelho que ficava largada ali na areia. Até o dia que a noite chegou e nada de garotos, nada de peixes ou conchas e cocos. Foi um dia triste, foi mesmo, mesmo para quem não entendeu as luzes na areia que sinalizavam à noite para o horizonte e esperavam uma resposta ao longe. Eram a suas famílias, pais e mães, irmãos, avós e avôs, amigos e todos que os conheciam e admiravam a esperar em vigília ali na praia de Ipanema. Acenderam fogueiras, usavam lanternas e lamparinas com as quais acenavam, esperançosos, para ninguém. Isso aconteceu se bem me lembro, em frente àquela rua, onde havia uma mansão dos donos de uma rede de lojas chique e do outro lado moravam duas senhoras - mãe idosa e a filha excepcional que sempre observavam vestidas com vestidos de franjas e, às vezes, com uma pena negra e curva na cabeça como duas melindrosas, sobre o muro amarelo do seu jardim cimentado, a olhar as pessoas indo para a praia, ali na Farme de Amoedo. O dia anterior amanhecera com a bandeira vermelha de perigo hasteada no posto oito, houvera uma ressaca daquelas que chegara de surpresa, as ondas cobriam as calçadas e a pista de asfalto e banhavam os pedestres que por ali passavam. Ela começara com uma ventania de madrugada, justo a hora que os rapazes costumavam sair para remar até as ilhas e mergulhar. Não voltaram. O alarme foi dada aos salva-vidas que acionaram uma busca lanchas assim que melhorasse o tempo. A noite baixou e nada. Não parecia a praia alegre e sensual aonde surgiria pouco tempo depois a inspiração para a bossa nova. Várias fogueiras acesas pelos familiares tentavam indicar terra firme aos naufragos. Até a manhã do dia seguinte ninguém foi encontrado. Mais tarde,um corpo foi achado boiando em alto mar e o outro numa praia do Recreio quinze dias depois. Mas, aquele foi um amanhecer triste, nunca me esqueci.E de nada adianta me lembrar, foi-se. Neste momento, a areia está quente, sol em meu rosto e todo o céu está azul, azul. Um pivete luta na praia com um rapaz, logo vem a sua turma e a do outro também. Cadeiras voam, como as barracas, os sanduiches, a gritaria. Socos, rasteiras, palavrões. Tudo voa pelos ares com uma chuva de areia. Os guardas-vidas chegam com outros policiais. Os banhistas correm com as crianças pelos braços. A pancadaria continua com os apitos e tumulto. Eu estou bem longe a imaginar quando virá a onda, o macaréu, o maremoto que vai me afogar em cor. Vai quebrar as vidraças, arrancar as pedras portuguesas e deixa-las pra lá do pantanal e da minha passividade. Será a onda espumante, negra, conquistadora que irá transformar a mata Atlântica e arrancar os espinhos da minha carne. Absolvição. Poesia. E me deixo levar nessa correnteza sem ver que em algum lugar do mundo:
um negro atravessa a quinta avenida
e conserta sobre o nariz seu óculos brilhante e verde;
uma mão lanhada retira um peixe arfante,
amarelo e oleoso do rio Javari;
um ator enforca a atriz numa cena percebendo
o quanto ele a amará na cena seguinte;
abre-se um olho irrigado de vermelho e pinga-se
quatro gotas de Lacril até que a irritação desapareça;
um pastor prega que " de embriaguez e de dor te encherás,
do calix de tua irmã Samaria";
um quadrúpede empaca diante de um onibus cheio
de gente e zum-zum dos insetos;
um tapete mágico sobrevoa as torres das refinarias
incendiadas por foguetes terra-terra;
um mulato de morro penetra a sua nega
mordendo seus braços de deusa Shiva;
uma mulata sacode seus peitos, encobreia,
aperta e quase engole todo o seu Ulisses;
alguém coloca gasolina no tanque sem sentir
que os vapores do combustível são um perigo terrível;
duas drosophillas se acasalam numa retorta transparente
acoplada a um contador Geiger à 0 graus centígrados;
a íris azul, azul do Brad Pitt espelha os refletores
iluminando um abismo sobre o Colorado;
o corpo de uma mulher de meia-idade é encontrado
semi-despido, desfigurado, cheio de moscas, enquanto o
investigador desconfia do seu marido de pouca idade;
em algum lugar do mundo existem Das Dores, Franks,
Brendas, Severinos, Freds, Lulas, Marias, Maries, Marys
Marïschens, Maricotas e Dortemünds e Socorros que nascem
crescem, se acasalam, procriam e morrem como gado;
em algum lugar do mundo, tudo que possa acontecer é um movimento descartado, que passa por meus olhos e deixo escapar, porque não faz parte dessa longa cerimônia elétrica que são os meus sentidos, a minha percepção descuidada, porque penso nessa bobagem que é a onda exterminadora, deusa dos surfistas e prefiro me voltar aos pensamentos da minha juventude diante da impossibilidade de resolver o assunto poesia. Deus deixa rastros na areia como as vírgulas nas poesias: reticentes, espaçadas, silenciosas e eu prefiro ouvir uma voz só, mas que me complete em azul, imensa, sagrada e absurda onda - simples poesia.
dedicada à Rosália Milsztajn
um negro atravessa a quinta avenida
e conserta sobre o nariz seu óculos brilhante e verde;
uma mão lanhada retira um peixe arfante,
amarelo e oleoso do rio Javari;
um ator enforca a atriz numa cena percebendo
o quanto ele a amará na cena seguinte;
abre-se um olho irrigado de vermelho e pinga-se
quatro gotas de Lacril até que a irritação desapareça;
um pastor prega que " de embriaguez e de dor te encherás,
do calix de tua irmã Samaria";
um quadrúpede empaca diante de um onibus cheio
de gente e zum-zum dos insetos;
um tapete mágico sobrevoa as torres das refinarias
incendiadas por foguetes terra-terra;
um mulato de morro penetra a sua nega
mordendo seus braços de deusa Shiva;
uma mulata sacode seus peitos, encobreia,
aperta e quase engole todo o seu Ulisses;
alguém coloca gasolina no tanque sem sentir
que os vapores do combustível são um perigo terrível;
duas drosophillas se acasalam numa retorta transparente
acoplada a um contador Geiger à 0 graus centígrados;
a íris azul, azul do Brad Pitt espelha os refletores
iluminando um abismo sobre o Colorado;
o corpo de uma mulher de meia-idade é encontrado
semi-despido, desfigurado, cheio de moscas, enquanto o
investigador desconfia do seu marido de pouca idade;
em algum lugar do mundo existem Das Dores, Franks,
Brendas, Severinos, Freds, Lulas, Marias, Maries, Marys
Marïschens, Maricotas e Dortemünds e Socorros que nascem
crescem, se acasalam, procriam e morrem como gado;
em algum lugar do mundo, tudo que possa acontecer é um movimento descartado, que passa por meus olhos e deixo escapar, porque não faz parte dessa longa cerimônia elétrica que são os meus sentidos, a minha percepção descuidada, porque penso nessa bobagem que é a onda exterminadora, deusa dos surfistas e prefiro me voltar aos pensamentos da minha juventude diante da impossibilidade de resolver o assunto poesia. Deus deixa rastros na areia como as vírgulas nas poesias: reticentes, espaçadas, silenciosas e eu prefiro ouvir uma voz só, mas que me complete em azul, imensa, sagrada e absurda onda - simples poesia.
dedicada à Rosália Milsztajn
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