Eu sou o Marcos Vasconcellos. Aqui eu escrevo o que me der na telha, o que me vem na hora de dormir, quando estou num onibus, ou no meio de um papo chato!
quinta-feira, 9 de setembro de 2010
Cidade vazia
como chegara até ali?
não me lembro de nada, nem daquele sofá, daquele abajur, o armário branco de portas fechadas, os tapetes persas, o sofá gasto e os retratos emoldurados de pessoas sorrindo em cima da mesinha em um canto esquecido, daquele ambiente estranho, desconhecido
como chegara até ali?
não me lembro de nada!
apenas, o telefone que tocava sem parar
e quando atendia
ele permanecia mudo
me questionando
me aspirando toda pergunta
e as dúvidas que surgiam
aumentando a angústia e a ansiedade
que me faziam tentar ouvir
por detrás do invisível silêncio
silêncio
silêncio
voltei ao que me preocupava, pensando nos trabalhos
pilhas de cartas
desenhos a serem feitos
contas a pagar
na preocupação com uma amiga que dava antialérgicos para seu cachorro
na mamãe, que perdera a dentadura em algum escaninho da casa
e de como explicar para ela como deveria tomar seus remédios
e mesmo me assombrar com a possibilidade dantesca de um meteoro cair sobre a Terra
e tudo se acabar
quando o telefone tornou a tocar na mesinha de cabeceira
desconfiado
alcanço o fone
e lentamente o tiro do gancho para atender a chamada
e digo: - alô, quem fala?
ele responde em silêncio
silêncio
silêncio
nenhum número no visor do bina denunciava aquela falta de sons
mas que à mim soava como um silêncio de vivos
de respiração entrecortada
de espera
de mãos nervosas a apertar os tecidos de uma camisa
de alguém que aguardava uma declaração que não tinha certeza
da sua insegurança em não encontrar o amor que achava que era o amor de sua vida
transbordante de amores que sempre entendia que eram os amores definitivos de sua vida
ou mesmo de ouvidos atentos à espera comunicado da entrega de algum pacote da farmácia
das compras do supermercado
ou qualquer pessoa que poderia ser alguém que dividisse tudo em antes e depois
isso me apavorou porque
nesse instante
entendi que também tudo à minha volta era um contumaz aspirador de percepções
de ruídos
de tato
de calor
de qualquer sensação
ou percepção de uma companhia à minha volta
e que tudo entorno era um compacto, absurdo, agudo, um doído silêncio
silêncio
silêncio
e os pássaros não voavam mais ou pousavam em algum galho que farfalhasse
a rua estava deserta
asfalto todo visível e sem trânsito e por onde folhas de jornais voavam livres ao vento
calçadas limpas de dejetos, homens e animais
as lojas abertas e iluminadas estavam sem fregueses e pareciam não ter mais vendedores e nem caixas
não se viam policias
táxis vazios e sem motoristas jaziam de portas abertas, largados pelo meio da avenidas
e todos os sinais sinalizavam indefinidos amarelos que piscavam sem nenhum clic-clac
eu tinha a intuição que tinha chegado à pouco nessa cidade
mas nem me lembro como
um intervalo vazio
uma lacuna em negro
interrupção do acontecido
angústia e desorientação
foto de Stephen Wilkes Ellis
como chegara até ali?
e pra que?
quando eu queria escutar o barulho de pessoas amigas
quando o calor de corpos me acalmava
quando o olhar sorridente de alguém me dizia o infinito
quando a presença de quem quer que fosse me restaurava a possibilidade da existência
quando sabia que se existe um momento daqueles
que por mais que tivesse perfuradas as minhas defesas
que me desestruturasse o desabar dos eventos de um dia à dia
que fosse completamente refeito por um simples ato dos olhos de alguém a me dizer o que não precisava ser enunciado
porque era claro, explicito
que era como me rasgasse os véus de minhas defesas
que era como me oferecesse um barco para alguma travessia
que o destino seria compartilhado por ele, aquele olhar
e se outras mão segurassem as minhas então
o meu mundo antigo desmoronaria
sugerindo
em vez de um mundo explícito
outro, vertical e ascendente
ali defronte, resplandecendo
que eu não via
pois que o imaginava lá, além mar, centro das nuvens
e que depois me convidaria para a viagem até essa inesperada terra das possibilidades sem fim
para o paraíso selvagem, mas doce
aquele eu inventasse no delírio mais desvairado
como um leito tranquilo e macio
e aonde tudo que viesse pelo futuro
eu teria uma companhia, ao lado, a me dizer :
fique tranquilo, vai passar
eu estou aqui
ou
felicidades
essa alegria é pra você
me dei conta então do desaparecimento de tudo à minha volta
tudo agora era vácuo e amplidão
e o silêncio
silêncio
silêncio
só com o telefone contava para ter ligação com alguém
um ser exterior àquele vazio
ao não ser
que era aquele lugar
foto de Marvin Newman
então decidi correr atrás da única ligação que eu tinha com o exterior
o encontrar seguindo aquele fio
e o arranquei da parede
e nervosamente o segui através de um sem fim de corredores
de mil quartos assombrados pela meia luz
outros mais iluminados, mas todos agora tão familiares
pois, chocado, percebi que eram todos os quartos da minha vida
que da minha memória que voltavam ao meu redor e se construiam à minha volta
e assim os percorri cabreiro
os explorando como já os conhecesse , como conhecia mesmo
através quartos cheio de brinquedos infantis
através de salas desmobiliadas onde festas viveram e sujaram o chão com doces
através do saguão mudo sem ninguém a passar
através de escadas mal pisadas porque usava-se mais o elevador
através da portaria avessa à recepção
através das ruas e dos postes
escalando um à um
até chegar ao seu cume
aonde me orientava e descobria tornava a arrancar dali o fio de minha salvação
e o enrolava em um cabide sem roupas
por quarteirões sem fim
por espaçosas avenidas
por becos e praças e mercados
e estações, ruelas, bordéis, pontes e estádios
por cabines desocupadas aonde outros telefones balançavam desligados no ar tristes e abandonados
como quem estivesse falando tivesse sido interrompidos por algum cataclisma
seguindo e seguindo sem pronunciar palavra ou desabafo
entendendo, agora, tudo que vinha por lembranças mal ajustadas ou bloqueadas
a correr os dedos pelo fio interminável e quase imaginário de minha comunicação com o que há
e o segui, segui, segui
enrolando em uma gigantesca bobina
até entrar por um bueiro, indo através do esgoto
entre ratos e baratas
e o negro e imundo troar do silêncio
o fantasma do silêncio
o eco inaudível do silêncio
a ferida medonha do silêncio
para chegar à uma escada
em que o fio tornava a se elevar por uma abertura para o mundo exterior
foto de Rene Groebli
subi até o asfalto quase morrendo
e as calças encharcadas do que eu não queria ver
por saber que de mim aquela lama vinha
não queria ver e continuei a seguir
já me fora demais
e pensava enlouquecido em desistir
mas o silêncio
o silêncio
o silêncio
e persisti a seguir o fio
até a praia
e me despi, me lavei, mergulhei nas ondas
e me purifiquei, me livrei do que não era para mim o que eu sou
e me cobri de sal, rolei na areia, tornei a me banhar
e me deixei flutuar, se ir a boiar tantos erros inverossímeis
para sempre livres e perdoados, se esquecendo
acima de minha cabeça aturdida
tresloucada e ansiosa por um gesto afetivo
por um olhar de boa noite
por um abraço
por uma voz que me animasse
e servisse de entorno vivo a pulsar
por algo que vivesse e me desse a razão
para que eu me permanecesse na paz
que eu sabia que ali ainda morava
por algo que me tirasse desse circo imóvel
por uma ave a traçar um voo
ou até um morcego que denunciasse
algum pomar noturno e feliz
em que eu pudesse em consolar do que imaginava ou não do impensável
que podia abrir suas portas através de mim
um cartaz apontava - saída
à minha frente uma estação ferroviária
onde uma locomotiva imensa e seus vagões pareciam devorar quem os usasse para sair dali
e da sua chaminé antiga desse monstruoso cavalo de ferro à vapor
uma coluna cinzenta e quente brotava
vomitada por rolos de fumaça negra
e em suas laterais
placas explicavam por anúncios
Minus Taurus Linha Férrea e Cia
e agora, via já acima de mim, outra placa
que dava boas vindas
à quem ali pudesse chegar:
Benvindo à Cidade da Solidão
entre se precisar
mas, para sair, é preciso ter o bilhete Coragem
a próxima estação é a Cidade do Destino
saltar à esquerda
Boa Viagem!
devolvi o carretel com fios à uma cesta
onde um outro letreiro explicava
Deixe aqui seu fio condutor
e pensei sorrindo
a solidão maior é esquecer de si
é perceber a possibilidade de não ser
de que nem você lhe faz mais companhia
que aí se resume o Nada
o que nunca virá
e entrei na estação e fui a bilheteria
e quando entrei o único telefone tocou
e eu corri frenético até ele
e o peguei
e então escutei
com a voz que jamais esquecerei enquanto viver
Alô
Vamos sair ?
O trem partia!
foto Rene Groebli
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário