quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

O bom pastor




Que arrogância a minha, a de cobrar posições de quem quer que seja,

de herói, ou de vanguardista, de sábio ou sequer de apenas de estar

na luta!

E pra que serviram essas lutas, empresas, batalhas, sejam no terreno

do corpo físico ou da mente?

Não vencem agora de novo essas mesmas  "novas mentiras", nossos

"novos enganos", as mesmas mesquinharias?

Temos ainda em mente, pelo menos, os exemplos daqueles que apenas

com doçura foram sábios ou heróis na vanguarda das lutas de

sobrevivência, dentro da guerra contra a hipocrisia e a crueldade?


Os verdadeiros místicos são aqueles que sabem que nunca determinarão

onde termina a razão, o pensamento, e se inicia o Abstrato Intangível,

o que não se explica apenas com teorias e sim com o enternecimento e o

calor de um olhar, uma expressão de pasmo e submissão ao Intangível.

E percebe daí , então, como exercer o perdão, porque este,

que é o fundamento do grande místico, é a simples compreensão

de saber falível, de se saber quão pequenos e torpes podemos ser,

apesar de lutarmos pela imagem de grandes homens, porque somos

mínimos, um nada, que viemos de uma massa disforme microscópica

que passou a viver e, desde então, luta por isso como pode.

E, portanto, dessa relação podemos compreender nossa frágil

qualidade de seres humanos, animais que lutam por condições

melhores, sejam de vida, sejam de dignidade ou pelo que se ama

e, daí, o perdão, pelo entendimento àquilo que se ama e

nossa insignificância.

Então, quem são esses grandes homens agora?

Esses grandes sábios ou cientistas?

Costuramos o incompreensível e natural sentido do acaso, do

destino que vem do caos, à uma razão qualquer, assim como

meu pai ou meu avô costuravam panos em sua alfaiataria.

O acaso, a coincidência, é uma grande parte da Razão.

Mas agora morreu o romantismo, assassinado pela Razão,

só nos surpreende a tecnologia, não apenas o techno, seu uso,

o fazer - mas sim  a surpresa da invenção da técnica à serviço

do capital.

E o capital da generosidade?

E o investimento da verdade?

E os atos que achamos bons por suas consequências?

E a possibilidade do sentimento e do amor?

Dominamos os crimes?

Justificamos os demandos?

Reprimimos a violência?

Os homens deixaram de explorar os outros homens?

Tudo é relativo e tudo deve ser considerado.

A razão traz um lado maravilhoso, da praticidade, da compreensão

de tantos mistérios, mas não pode exterminar o que é humano,

sensível, a única coisa que em nós, seres viventes, que nos surpreende

incondicionalmente.





Meu pai, na infância, foi pastor de cabras, como tantos sábios

o foram antigamente, e de lá vieram com suas pequenas luzes até

seus reinos infinitos.

Mas, apesar de envolvido na ignorância, ou inocência,

pelo desconhecimento, não teria ele sido mais feliz naquela época?

Não venceu o caminho obscuro até as trilhas na luz do dia?

Não tinham mais esperanças?

Mais sorrisos, apesar dos dias difíceis, duros?

Ou apenas tinha a doçura com que afagava cada ovelha

no seu focinho, enquanto elas mansas pastavam

contentes o seu capim.

Porém, da rusticidade e das intempéries, ele se consolava

de imediato e considerava como um pagamento autêntico,

quando uma delas o olhava, como que dizendo, 

se nos afaga é porque é bom pastor!





O tempo é manso e a grama macia.

Meu bom pastor, o verde que nos aponta é apenas

o cuidado de tuas mãos e o amor, o calor dos teus

braços, quando às vezes nos leva no colo.

Nos conduz até onde possamos nos aquietar seguras,

na sombra de brancas nuvens e à luz plácida das estrelas.

À cada noite, deixa-nos nos aquecer à volta da sua fogueira

e nos protege dos lobos, porque és o bom pastor.


O amor, o sentimento mais elevado e humano,

vale mais que a técnica que o capital impõe.

Porém, talvez seja tarde para uma reconciliação.

Mas não basta apenas, a ti, seus discursos adocicados

e sentimentais, tuas canções, que feliz compõe, para

termos a certeza da sobrevivência de uns anos a mais

nessa natureza cruel e traiçoeira que a ela própria 

reinventa e aprimora, e que dela somos frutos

e ainda não a transcendemos.





Contudo, lá na infância o rebanho se aconchega, o pastor

a reúne para que não se percam uma da outra.

Ele olha a mais velha que parece dizer: - não tenha medo

te compreendemos, te obedeceremos.

E só sentirmos o calor meigo dos teus dedos, para sabermos

de ti, que o caminho pode ser de pedras rudes,

mas traz a certeza de que há um dia um pasto mais verde adiante.

Durma tranquilo, que nós te  vigiamos, e o que necessitas

e o até o que não  necessitas nós lhe daremos.


O bom pastor é aquele a quem o rebanho cerca por livre

e espontânea vontade, é aquele que nos deixa livres e

felizes e no entanto nos protege com coragem,

nos aquece no inverno, acende a sua fogueira

e nos aponta o horizonte com a vida tranquila.


Dorme, meu menino e usa nossa lã macia.

Aconchega tua cabeça e descansa em paz,

porque, acima de você, a sua luz está a brilhar

e a noite é como nossa lã, teu abrigo entre os céus.

domingo, 21 de novembro de 2010

olhos fugitivos






súbito levantar
e a noite me escapa
a consciência turva sob o lençol
lenta do tempo inconsciente
algo que me angustia
me chama ao quarto apagado
agora deserto sem areias
agora espaço preso no escuro sem ventos
marcha sem passos, sem scirocco ou sem simun
entre o que se passou e o que não foi acabado
corrida sem aventuras
dormência na vertigem da alma



                                                                                                                                                     foto de Weston



será esse momento como a caravana a vagar entre as dunas dos meus mistérios?
será que dá voltas sem ver a cidade ao longe
ou algum oásis, que nos descanse do que vai acontecer?
será melhor, então, me agarrar as lembranças
ou imaginar logo o que, com o amanhã despontando, devo fazer?

ou será que é melhor me despojar de tudo
e inventar um novo despertar, um novo diálogo
esquecer os dias passados, tormentos e agruras
e sorrir para o feliz futuro que desejo que aconteça?

será esse amanhã a manhã do último dia?
a inescrutável questão de todo os dias
e todas as noites
e todas as horas
e todos os segundos
e do justo agora?


                                                                               still da FundaçãoWilhelm Murnau



na verdade, tudo me apavora
não sou um super herói que a platéia adora
antes parvo observador das horas
temeroso aventureiro do acontecer
que pelo andar da carruagem
estacionou-se em contemplar o precipício
que despenca para dentro de sua mente
e divorcia do amor que tem pelo dia
e se amazia com o ávido prazer
que a atmosfera em breu lhe tem a oferecer

sabe-se impotente para os minutos
que escorrem pelos dedos
lhe cegam
lhe entopem
lhe afogam na areia do deserto
gigantesca ampulheta
que nenhum caminho evita por desvios
para que veja o mundo se esquecer

melhor me fazem os olhos
que não mais procuram um qualquer futuro
o que ainda não se pode prever
e descem a cortina do distanciar
do sobressalto de tanto murmúrio e incógnitas
desligam a luz do cômodo
e tudo se apaga
e deixam o sono me conhecer
e sonho
Boa noite!






quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Lacuna

                                                                                  foto de Rodney Smith
                                 

uma figura precisa de um fundo
um jornal precisa de notícias
um carro precisa de passageiros
um livro precisa de histórias

um dia precisa de sol
um caderno precisa de letras
uma carta precisa de confissões
um pássaro precisa de amplidão
uma questão precisa de respostas

nada pode ser o que falta
tudo é o que completa, se nada existe
nada se encaixa quando se está triste
tudo voa se o vento se faz uma borrasca
e se vai embora, agora não mais existe

o mar precisa de horizonte
um assobio precisa de sopro
a praia precisa de ondas
um castelo precisa de torres
a serra precisa dos montes

um doce precisa de lábios
um beijo precisa de desejo
um balão precisa flutuar
a rainha precisa de cortejo
a condessa precisa do conde
pra respirar preciso de ar

mas e quando se sente
que não se sabe o que lhe completa?
e se o que vier não der conta do recado?
mas se depois do que já está, ainda faltar uma lacuna?
e se o destino não for reinterado
mesmo contado as horas uma à uma?

e se nunca for uma linha reta?
e será que o futuro prescinde do passado?
mas se tudo isso não for uma verdade concreta
ou coisa nenhuma?



                                                                               foto de Rodney Smith


uma gaveta precisa de cartas
um pensamento precisa de liberdade
um movimento precisa de ideias
uma ressaca precisa de ondas
o homem precisa da verdade

um ninho precisa de ovos
um avião precisa das asas
os velhos precisam dos novos
dois corpos precisam de fogo
um vulcão precisa de erupção
e uma cidade das suas casas

e será que esse vazio se vai?
e se a estrada não for a lugar algum?
e se a dança se fizer sem música?
e se eu pular ao som do ritmo desse baticum?
e será que são necessário tantos acordes para ser uma manhã?
e virá o término do meu ser sozinho
e fará em mim o fim dessa vida vã?
e o ciclo se repetirá no seu caminho?
como saber o que em mim falta
onde acharei enfim o meu xamã?
onde é a caverna que se esconde um carinho?

um perfume precisa de colo
os travesseiros precisam de cabeças
um carinho precisa de sentimento
a ladeira precisa das rodas presas

um hino precisa de orgulho
uma festa precisa de alegria
uma rota precisa de uma caravana
a fogueira precisa de lenha acesa


                                                                                 foto de Rodney Smith



portanto, o mundo sempre está a se completar
embora o tempo que isso se faça, seja
por exemplo, todo o tempo a se formar
porém, quem espera sempre alcançará ou não?
contudo, sempre fará algum sentido o que virá
de onde esteja?
todavia , não seja o arranjo o perfeito exemplo

entretanto, sempre tantas esperanças há,
tantas esperanças , tão benfazejas
mas quem não tenta se exclui e não saberá a solução
nem o que ficará, estará a contento perdido
outrossim, terá algo a compreender ainda na mão





um baralho precisa das cartas
uma roupa precisa de botão
um corredor precisa de fôlego
uma bicicleta precisa de pedais
um arrependimento precisa do perdão

um animal precisa de comida
um automóvel precisa de gasolina
o céu precisa do azul
e um chinês da China

o teatro precisa de emoção
um cego precisa do que não vê
o ator precisa do momento
e agora comigo
eu apenas preciso de você



                                                                                                            foto de Blanc







sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Um pequeno furo



pra que serve
nesse espaço obscuro
tatear o que circunscreve
sem razão
um pequeno inexpressivo furo?

à menos
que seja a esperada porta
que aberta
eu veja tudo que me importa
e tateando lhe descubra a fechadura
como escondida dentro de um muro
                                                                                                             


e o furo apenas sirva
como buraco da fechadura
para a chave viva
na cabeça dessa criatura emparedada
que não enxerga
não vê o que deveria já saber
em vez pretender o impossível ofício
de imaginar para que serve a sorte que lhe foi dada

esse pequeno ponto cego
esse claro orifício
esse claro vazio
que chama o que lhe resgata
de ser apenas uma passagem comum
do fácil ao difícil
para a que precisa ser vivida
para não ser mais trancada


talvez se importe apenas
em descobrir montanhas
e ir às alturas
sentindo só as coisas pequenas
crescendo e ascendendo
acendendo a sua morada às escuras
a luz que destranca a chave do enigma
e que ali não há nenhuma armadilha

e diz que a vida é a porta
e essa
que é como um pequeno furo
por onde só passa
quem lhe dá a senha imaginária
que a porta sempre esteve aberta
para quem vê no escuro crú e sofrido
que é esse mesmo o caminho
para o País Infinito das Possíveis Maravilhas


                                                                                                                                       foto de Lars Henkelz





segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O buraco

                                                             


                                   Buraco/Hole -1990/1991

                                   grafite sobre papel/graphite on paper
                                   195cm x 120cm
                                   Coleção José Olympio -  São Paulo.
                                   Marcos Vasconcellos

Esse foi um desenho que eu fiz depois de uma crise tremenda! Fiquei doente e não podia mais pintar à óleo e acrílico não me seduzia muito- gostava de trabalhar com o simbólico dos materiais, como aprendi com a obra genial do alemão Joseph Beuys e pelo trabalho do meu ídolo da época - o neoexpressionista Anselm Kiefer.
Por ali tinha me encontrado!
Chorei de vergonha e emoção ao ver na Bienal de São Paulo as telas gigantescas do Kiefer, porque pretendia abandonar a arte por todo o sofrimento orgânico, material e psicológico que ela me trazia ( estava completamente duro e chegara à um estado prévangoghiano, se não fosse minha família!). Para que sofrer tanto afinal?
Talvez eu não fosse tão bom assim!
Talvez fosse melhor aceitar uma carreira normal , dentro de um consultório ou algum emprego medíocre, ou de novo na televisão, mas que me desse dinheiro para sobreviver!

Fiquei andando pelas ruas, solto, sem destino, pensando no que fazer da minha vida. E fui dar numa pracinha.

Olhava para o chão, mas no fundo olhava para mim mesmo.


                                                                                                obra de Anselm Kiefer

Foi quando dei com uma folha de jornal amassada e muito suja de lama, areia e terra, jogada no chão.
Ali, despojada, como um lixo desprezível, mostrava um homem desesperado, mais ainda esperançoso, procurando um diamante cavando com uma pá pequena e velha, no solo de algum lugar no interior desse Brasil!

Eu o via cavando, cavando, cavando e procurando o tesouro que o libertaria da miséria, a pedra esquecida que libertaria sua vida daquele orifício infecto entre minhocas e dejetos.

Eu me abaixei, e , com um pouco de nojo, segurei a foto e a tirei do chão.
Pensei, porque um lixo não pode ser um diamante, assim como na alquimia a Pedra Filosofal é transformada, retirada da Prima Materia, transformando o próprio alquimista nesse processo também em um Iluminado!
Já pensou eu - um iluminado!
E ri de mim mesmo!
A dobrei com cuidado, depois de tentar limpá-la um pouco e a coloquei com cuidado no bolso. E continuei meu caminho para casa, pensativo.
Me lembrei de meu pai trabalhando em casa, quando eu era muito pequeno ainda, e como eu tentei entender o trabalho que ele fazia de tradução e adaptação do que ele tentou me explicar como a General Eletric, firma onde trabalhava como engenheiro, tinha descoberto uma maneira de transformar grafite de lápis em diamante artificial, industrial, sob a pressão de dezenas de milhares de atmosferas, como se tantos milhares céus empilhados uns sobre os outros, caíssem de repente em cima daquela pontinha de lápis, que também em latim significava pedra e daí ,se transformasse num minúsculo diamante, que era a pedra mais resistente do mundo.

Ele falava empolgado, me explicando que era o mesmo cristal que as mulheres faziam jóias, colares caríssimos para se enfeitar, coroas para ser colocadas na cabeça dos reis, ou uma simples aliança de casamento, que selava a união de dois seres que se amavam, para sempre na eternidade.
E sorri, porque era como se eu voltasse para aquele momento, em que conseguia falar com meu pai, ainda que por breves momentos, pois era por demais fechado em si próprio e em seu mundo torturante do seu passado, para mim desconhecido.

No dia seguinte, sem nenhum plano, coloquei uma folha enorme de um rolo gigante de papel que comprara, havia tempos, pregada na parede e pus-me a reproduzir aquela imagem, com ela me levasse a encontrar algum diamante impossível e imaginário, utópico.

Tinha, na época, muito preconceito contra desenhos realísticos e preferia artistas expressionistas e conceituais como meus dois mestres que falei antes.Achava-os frios e apenas um exibicionismo de um virtuosismo, que nem precisava ser tão virtuoso assim, visto que já existiam na época maneiras de se reproduzir uma imagem projetando-as na parede ou na mesa, sem nenhuma dificuldade e que qualquer um que se interessasse pudesse fazê-las quando e como quisesse.

Porém, como não pretendia mostrar à ninguém, fazia-o apenas para mim, continuei por puro prazer da aventura.

Os dias se seguiram, assim como meses, e eu ainda desenhava sem parar noite e dia com a minha lapiseirinha de 0,05mm , a mais fina de todas, construindo a imagem. meus joelhos sangravam sem parar, apesar das almofadas que coloquei no chão para sustentar os meus joelhos dobrados para alcançar os lugares mais baixos do papel meio amarelado.

O desenho se estendia do teto até os tacos do chão em sua largura máxima de 120cm e com 195cm de altura.

Porém, quanto mais me aprofundava na terra , mais uma pergunta me assediava - porque estava cavando o buraco que outra pessoa fizera?

Seria obrigado a fazer, repetir aquela mesma escavação?

Porque não eu mesmo fazia o meu buraco? Afinal, eu escavava ali também para dentro de mim , de minha cabeça e de minha alma!

Uma noite, cansado, apaguei as luzes e dormi sobre a almofada que acolhia meus pobres joelhos feridos.  A lua batia direto sobre o chão, vindo por cima do Cristo ao longe, na montanha do Corcovado e iluminava a Lagoa, e passava através da persiana até o desenho extendido na parede. Meus olhos subitamente viram algo se mexer ,como se surgisse do fundo do buraco que me hipnotizava desde aquele dia na praça. Fiquei imóvel e me pus a observar aquele fenômeno. Aos poucos, percebi que era apenas uma mariposa que ali pousara. De repente, ela levantou voo por sobre mim indo até a estante, sobre o volume de um velho livro de minha mãe. Me aproximei e levei um susto, ao ver o título que se estampava na lombada e tremi por dentro - O Paraíso Perdido" de Dante! Algo como uma predição viera daquela psyché, que voava perdida num apartamento do Leblon. Peguei o volume como um tesouro, entendendo, nesse instante, como terminar minha obcessão por tão estranho ato do impossível mundo circundante.   
Tomado de uma energia inesperada, tornei a pegar a lapiseira e a desenhar estranhos elementos, que à mim soavam tão claros. O buraco era parte de mim agora, mas a realidade da foto me incomodava.

Por fim, resolvi, tirei o homem dali e eu assumi a escavação num território totalmente imaginário , pois não aparecia na fotografia. E assim continuei por nove gestacionais meses.
Aprofundando e diminuindo o tamanho do buraco, e pensando e pensando em mim, na impossibilidade que era a arte, na impossibilidade do viver, na impossibilidade de fazer arte ali naquele paraíso descoberto há tempo ,que era a minha cidade, mas totalmente corrompido pela violência, pelos roubos, pela política, pelos ideais enganosos e tortuosos do próprio homem.
E continuava obsessivamente, como se quisesse transformar o próprio grafite que eu usava num diamante pelo processo de desgaste, pela pressão sobre o papel e realizar o destino latente contido naquela pequenina pedrinha que deixava sua marca por onde passasse.
O buraco foi se estreitando, e eu escavando, escavando, construindo figuras geométricas e alquimias, numerologias desenhadas, relações, pedaços de vasos alquimicos e ossos, encontrando objetos indecifráveis, até que a escavação se tornou como um ponto, que era exatamente do tamanho da cabeça do grafite de 0,05mm.

Pensava o que acontecera comigo, com a minha terra natal, minha praia, meu paraíso utópico perdido e parei - escrevi um nome e uma data - ali estava o retrato em raio X de um delírio histórico, um processo, o ponto de partida e final de toda trajetória - finalmente o paraíso perdido dentro de uma mente, mas seria um paraíso? O que seria um buraco escavado por nove meses? O que era aquilo finalmente? As incógnitas me atordoavam! O que desenterrei? E o que enterrara sob tantos riscos da lapiseira? Alguém descobriria meu absurdo insight?  Por isso, por meu ato insano, tanto cavara como enterrara repetidamente algo que nunca poderia dar conta, e que talvez ficasse melhor enterrado ou o invisível , camuflado por tanta grafite à sua volta.

E o tirei da parede satisfeito, depois de o fixar - ali começava a minha viagem em busca do impossível oculto, o que havia dentro de cada um, que somos todos feitos de grafite, carbono puro, orgânicos, a materializar, desenhar o seu destino, transformar em imagens, realizações de alguma coisa , e ocultando seu mistério, que vive em algum lugar por dentro da gente.  Assim , construimos desafios sobre o não sei o que, ou das lutas que enfrentamos, mesmo que fossem impossíveis para que assim todos pudéssemos concluir nossa trajetória - somos seres à caminho do pretendido final feliz em algum dia!.










sábado, 25 de setembro de 2010

Reflexões sobre uma folha de papel



Tenho lido tanta coisa minha e todas me deixam desejar!
O papel deve ser o mesmo, o lápis, ou caneta, a pena
e nenhum escreveu uma só linha, uma só letra que me faça com que eu pense :
- está aqui uma obra prima a respirar!

E faço um último ponto, o ponto final, usando de toda energia
cravando a lapiseira no papel esperando que ele grite de dor
sangre ou gema, implore
ou como se eu agisse como aquele gênio italiano
a bater seu martelo no joelho de seu herói em mármore: - Parla!
faço um ponto - o final


                                    foto por Jirel



Eu sou um que escrevo com a incerteza de uma meta
Se a forma é inédita, se surpreende alguém
eu me realizo de fazê-lo conhecer, dessa forma inaudita 
esse rude correr do lápis
para que então talvez acredite que ali está o que não pode se corromper
luz e sombra a serem letras
que são na verdade átomos, íons da minha alma
as portas abertas de tantos não sei,
como o que será
ou de não entendi
deixe eu ver
de : - Que coisa incrível!
ou o que vai acontecer
que se identifica com seu próprio arsenal de espantos
sendo quase como uma coisa que ela escreveria também
um momento seu também
e por isso criando uma estima e uma coerência íntima com o que leu

O que me estupefacta é como ver tudo
                                               sentir tudo
                                               respirar tudo
atônito de não saber que não sei coisa nenhuma
e que nunca saberei mais do que esse sentir
esse respirar
esse abobalhamento de se saber ali, ou aqui,
neste mundo que não se sabe a serventia
e ter que passar por tudo o que passei
passo
e continuarei passando
como todo mundo
sabendo que nesta corrida, ao final, não há vencedor
e não há louvores
a não ser o que regozijamos em fazer aquilo que planejamos
e que deu certo
porque não saberemos quando cruzaremos a reta de chegada
até o momento que não podemos mais fazermos nada 
e então não adianta os abraços ou aplausos
e sim agradecermos a oportunidade
e sorrir

 
Resta então apenas saber que fizemos tudo o que pudemos
com o que tínhamos para realizar nosso objetivo
e que, talvez
esses escritos na verdade sejam flores que nunca olhamos
mas que viverão para sempre!

                                                                                                                                    foto de Philippe Peche





quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Cidade vazia




como chegara até ali?
não me lembro de nada, nem daquele sofá, daquele abajur, o armário branco de portas fechadas, os tapetes persas, o sofá gasto e os retratos emoldurados de pessoas sorrindo em cima da mesinha em um canto esquecido, daquele ambiente estranho, desconhecido

como chegara até ali?
não me lembro de nada!
apenas, o telefone que tocava sem parar
e quando atendia
ele permanecia mudo
me questionando
me aspirando toda pergunta
e as dúvidas que surgiam
aumentando a angústia e a ansiedade
que me faziam tentar ouvir
por detrás do invisível silêncio
                                 silêncio
                                 silêncio


voltei ao que me preocupava, pensando nos trabalhos
pilhas de cartas
desenhos a serem feitos
contas a pagar
na preocupação com uma amiga que dava antialérgicos para seu cachorro
na mamãe, que perdera a dentadura em algum escaninho da casa
e de como explicar para ela como deveria tomar seus remédios
e mesmo me assombrar com a possibilidade dantesca de um meteoro cair sobre a Terra
e tudo se acabar
quando o telefone tornou a tocar na mesinha de cabeceira



desconfiado
alcanço o fone
e lentamente o tiro do gancho para atender a chamada
e digo: - alô, quem fala?
ele responde em silêncio
                         silêncio
                         silêncio

nenhum número no visor do bina denunciava aquela falta de sons
mas que à mim soava como um silêncio de vivos
de respiração entrecortada
de espera
de mãos nervosas a apertar os tecidos de uma camisa
de alguém que aguardava uma declaração que não tinha certeza
da sua insegurança em não encontrar o amor que achava que era o amor de sua vida
transbordante de amores que sempre entendia que eram os amores definitivos de sua vida
ou mesmo de ouvidos atentos à espera comunicado da entrega de algum pacote da farmácia
das compras do supermercado
ou qualquer pessoa que poderia ser alguém que dividisse tudo em antes e depois

isso me apavorou porque
nesse instante
entendi que também tudo à minha volta era um contumaz aspirador de percepções
de ruídos
de tato
de calor
de qualquer sensação
ou percepção de uma companhia à minha volta
e que tudo entorno era um compacto, absurdo, agudo, um doído silêncio
                                                                                              silêncio
                                                                                              silêncio





e os pássaros não voavam mais ou pousavam em algum galho que farfalhasse
a rua estava deserta
asfalto todo visível e sem trânsito e por onde folhas de jornais voavam livres ao vento
calçadas limpas de dejetos, homens e animais
as lojas abertas e iluminadas estavam sem fregueses e pareciam não ter mais vendedores e nem caixas
não se viam policias
táxis vazios e sem motoristas jaziam de portas abertas, largados pelo meio da avenidas
e todos os sinais sinalizavam indefinidos amarelos que piscavam sem nenhum clic-clac

eu tinha a intuição que tinha chegado à pouco nessa cidade
mas nem me lembro como
um intervalo vazio
uma lacuna em negro
interrupção do acontecido
angústia e desorientação

                                                                              foto de Stephen Wilkes Ellis


como chegara até ali?
e pra que?
quando eu queria escutar o barulho de pessoas amigas
quando o calor de corpos me acalmava
quando o olhar sorridente de alguém me dizia  o infinito
quando a presença de quem quer que fosse me restaurava a possibilidade da existência
quando sabia que se existe um momento daqueles
que por mais que tivesse perfuradas as minhas defesas
que me desestruturasse o desabar dos eventos de um dia à dia
que fosse completamente refeito por um simples ato dos olhos de alguém a me dizer o que não precisava ser enunciado
porque era claro, explicito
que era como me rasgasse os véus de minhas defesas
que era como me oferecesse um barco para alguma travessia
que o destino seria compartilhado por ele, aquele olhar
e se outras mão segurassem as minhas então
o meu mundo antigo desmoronaria
sugerindo
em vez de um mundo explícito
outro, vertical e ascendente
ali defronte, resplandecendo
que eu não via
pois que o imaginava lá, além mar, centro das nuvens
e que depois me convidaria para a viagem até essa inesperada terra das possibilidades sem fim
para o paraíso selvagem, mas doce
aquele eu inventasse no delírio mais desvairado
como um leito tranquilo e macio
e aonde tudo que viesse pelo futuro
eu teria uma companhia, ao lado, a me dizer :
fique tranquilo, vai passar
eu estou aqui
ou
felicidades
essa alegria é pra você

me dei conta então do desaparecimento de tudo à minha volta
tudo agora era vácuo e amplidão
e o silêncio
    silêncio
    silêncio
só com o telefone contava para ter ligação com alguém
um ser exterior àquele vazio
ao não ser
que era aquele lugar


                                                                                                                 foto de Marvin Newman



então decidi correr atrás da única ligação que eu tinha com o exterior
o encontrar seguindo aquele fio
e o arranquei da parede
e nervosamente o segui através de um sem fim de corredores
de mil quartos assombrados pela meia luz
outros mais iluminados, mas todos agora tão familiares
pois, chocado, percebi que eram todos os quartos da minha vida
que da minha memória que voltavam ao meu redor e se construiam à minha volta
e assim os percorri cabreiro
os explorando como já os conhecesse , como conhecia mesmo

através quartos cheio de brinquedos infantis
através de salas desmobiliadas onde festas viveram e sujaram o chão com doces
através do saguão mudo sem ninguém a passar
através de escadas mal pisadas porque usava-se mais o elevador
através da portaria avessa à recepção
através das ruas e dos postes
escalando um à um
até chegar ao seu cume
aonde me orientava e descobria tornava a arrancar dali o fio de minha salvação
e o enrolava em um cabide sem roupas
por quarteirões sem fim
por espaçosas avenidas
por becos e praças e mercados
e estações, ruelas, bordéis, pontes e estádios
por cabines desocupadas aonde outros telefones balançavam desligados no ar tristes e abandonados
como quem estivesse falando tivesse sido interrompidos por algum cataclisma
seguindo e seguindo sem pronunciar palavra ou desabafo
entendendo, agora, tudo que vinha por lembranças mal ajustadas ou bloqueadas
a correr os dedos pelo fio interminável e quase imaginário de minha comunicação com o que há
e o segui, segui, segui
enrolando em uma gigantesca bobina
até entrar por um bueiro, indo através do esgoto
entre ratos e baratas
e o negro e imundo troar do silêncio
o fantasma do silêncio
o eco inaudível do silêncio
a ferida medonha do silêncio
para chegar à uma escada
em que o fio tornava a se elevar por uma abertura para o mundo exterior

                                                                                             foto de Rene Groebli


subi até o asfalto quase morrendo
e as calças encharcadas do que eu não queria ver
por saber que de mim aquela lama vinha
não queria ver e continuei a seguir
já me fora demais
e pensava enlouquecido em desistir
mas o silêncio
    o silêncio
    o silêncio

e persisti a seguir o fio
até a praia
e me despi, me lavei, mergulhei nas ondas
e me purifiquei, me livrei do que não era para mim o que eu sou
e me cobri de sal, rolei na areia, tornei a me banhar
e me deixei flutuar, se ir a boiar tantos erros inverossímeis
para sempre livres e perdoados, se esquecendo

acima de minha cabeça aturdida
tresloucada e ansiosa por um gesto afetivo
por um olhar de boa noite
por um abraço
por uma voz que me animasse
e servisse de entorno vivo a pulsar
por algo que vivesse e me desse a razão
para que eu me permanecesse na paz
que eu sabia que ali ainda morava
por algo que me tirasse desse circo imóvel
por uma ave a traçar um voo
ou até um morcego que denunciasse
algum pomar noturno e feliz
em que eu pudesse em consolar do que imaginava ou não do impensável
que podia abrir suas portas através de mim
um cartaz apontava  - saída

à minha frente uma estação ferroviária
onde uma locomotiva imensa e seus vagões pareciam devorar quem os usasse para sair dali
e da sua chaminé antiga desse monstruoso cavalo de ferro à vapor
uma coluna cinzenta e quente brotava
vomitada por rolos de fumaça negra
e em suas laterais
placas explicavam por anúncios
Minus Taurus Linha Férrea e Cia

e agora, via já acima de mim, outra placa
que dava boas vindas
à quem ali pudesse chegar:

Benvindo à Cidade da Solidão
entre se precisar
mas, para sair, é preciso ter o bilhete Coragem
a próxima estação é a Cidade do Destino
saltar à esquerda
Boa Viagem!

devolvi o carretel com fios à uma cesta
onde um outro letreiro explicava

Deixe aqui seu fio condutor

e pensei sorrindo
a solidão maior é esquecer de si
é perceber a possibilidade de não ser
de que nem você lhe faz mais companhia
que aí se resume o Nada
o que nunca virá

e entrei na estação e fui a bilheteria
e quando entrei o único telefone tocou
e eu corri frenético até ele
e o peguei
e então escutei
com a voz que jamais esquecerei enquanto viver
Alô
Vamos sair ?

O trem partia!


                                                                                      foto Rene Groebli